Pensar Global, Ação Local

 por Carolina Derivi # em 35, Revista

Esta é a nova máxima do século XXI para o economista e ambientalista carioca Sérgio Besserman Vianna. As mudanças climáticas lançam luz sobre um mundo interdependente por completo, de modo que não basta fazer a lição de casa local. Como 70% das emissões globais de gases de efeito estufa têm origem nos ambientes urbanos, há muito que as grandes cidades podem fazer para mitigar o fenômeno e ainda influenciar novos rumos para o planeta.

Besserman estuda as consequências sociais e econômicas da mudança do clima há mais de dez anos. Entre outras atividades, foi diretor de Meio Ambiente do BNDES e presidente do IBGE. Agora, à frente da recém-criada Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável, ligada à prefeitura do Rio de Janeiro, tem a oportunidade de unir os conhecimentos de meio ambiente aos de urbanismo para dar um norte sustentável à capital fluminense, reunindo representantes de todas as secretarias e órgãos públicos.

Adaptar as cidades para eventos climáticos extremos, como aumento de chuvas e ondas de calor – para o Rio, especialmente a elevação do nível do mar –, requer mais conhecimento sobre projeções climáticas locais e regionais. E as ações de engenharia imaginadas hoje podem vir a se tornar obsoletas, no futuro. Mas nada disso impede que o planejamento se inicie já, despertando o que, segundo Besserman, as cidades têm de mais característico: a criatividade.

As mudanças climáticas constituem um problema global, aparentemente uma tarefa para chefes de Estado na arena internacional. O que as cidades têm a ver com isso? As cidades são parte decisiva da luta para que evitemos os piores cenários do aquecimento global. E isso tem enormes implicações na economia, na sociabilidade, na política local e global. Pelo lado da mitigação, ou seja, da tentativa de evitar os piores cenários, cerca de 70% das emissões globais de gases de efeito estufa decorrem das cidades. De modo que, sem uma mudança nos hábito de consumo, produção, convivência e logística nas cidades, será impossível reduzir as emissões ao nível necessário. E, pelo lado da adaptação, as consequências do aquecimento global se abaterão fortemente sobre as cidades, que já é onde vive mais da metade da população mundial. Então elas terão de gastar bastante, principalmente na proteção das suas populações mais vulneráveis, que são os mais pobres.

Significa que a previsão do IPCC de que os países mais pobres sofrerão os piores impactos também se aplica em escala local, como nas capitais brasileiras? Com segurança. Os mais pobres são sempre os mais vulneráveis, porque têm menos recursos para se defender, e isso inclui recursos monetários e acesso a informação e conhecimento. Num país tão desigual como o Brasil e, ao mesmo tempo, fortemente urbanizado, com alguns dos aglomerados urbanos mais complexos do mundo, as populações mais pobres são aquelas que quase sempre estarão em locais de maior vulnerabilidade.

O geógrafo Milton Santos dizia que a urbanização brasileira tratou o espaço das cidades como mercadoria, e as transformações guiadas sempre por interesses privados levaram à segregação socioespacial. A emergência climática é também uma oportunidade de rever erros do passado? Ou seja, replanejar a cidade conforme um interesse comum? O grande historiador do século XX, Eric Hobsbawm, chamou uma vez a urbanização brasileira de o processo demográfico mais caótico de toda a história da humanidade. Isso foi antes dos anos 90, e é claro que a China nas últimas duas décadas compete bem com o que aconteceu aqui. Mas não creio que seja a fonte da desigualdade. Nós somos o melhor retrato da realidade mundial. Acho que a desigualdade brasileira reproduziu-se nessa urbanização caótica do século XX de uma forma que talvez não pudesse ser contraposta por políticas relacionadas ao solo urbano. É uma tendência forte que se expressaria de qualquer maneira.

A mudança climática vai despertar aquilo que as cidades têm de mais específico, que é a criatividade. Evidente que existem alguns objetivos gerais, como energia, lixo, transportes, mas cada cidade – e esse é o traço mais característico da história das cidades do mundo – vai descobrir os seus próprios caminhos para atingir esses objetivos.

Respondendo à sua pergunta, é muito possível, mas não é garantido, que esse despertar da criatividade possa e deva ser aproveitado para melhorar também outros aspectos da vida urbana.

Mas, no caso dessa desigualdade expressa na segregação espacial, como populações em favelas íngremes, à beira de córregos, mais vulneráveis a chuvas intensas, revertê-la é também uma medida de adaptação? Certamente é. Mas aí o que precisa ser feito são diversas análises de custo-benefício. Vou dar um exemplo prático. Um dos maiores problemas de adaptação à mudança climática na Região Metropolitana do Rio de Janeiro são as populações carentes nas calhas dos rios da Baía de Guanabara. O que será feito talvez seja a mesma coisa para todos os rios, talvez não seja. Em alguns casos, pode ser um reordenamento fundiário na linha de diminuir a segregação. Em outros casos, tanto por custo-benefício quanto por vontade ocasional dessas populações, vamos ter engenharia para evitar os impactos.

É possível planejar a adaptação mesmo com incertezas, por exemplo, de qual vai ser a elevação da temperatura ou a variação do regime de chuvas? É possível. Mas a questão, em 2009, é dar apoio ao Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e a todas as demais instituições que trabalham na produção de conhecimento nessa área, para que o Brasil possa ter projeções regionais e também locais, na modelagem de mudanças climáticas. Isso ainda não temos.

Mais importante hoje é iniciar o planejamento. Para iniciar a engenharia de obras tem tempo, não é o momento ainda, porque a análise custo-benefício ainda não está clara. Mas nós precisamos desesperadamente de mais produção de informação a respeito de mudança climática, em nível nacional e, mais ainda, local.

Também é fundamental internalizar o conhecimento sobre mudança climática nos órgãos do serviço público. Todas as secretarias, empresas públicas, todos os planejamentos estratégicos e setoriais têm de incorporar esse fator.

Mas é possível tomar medidas imediatas? É possível e necessário, tanto para mitigação quanto para adaptação. Em primeiro lugar, se o argumento das incertezas conduzir à paralisia, é o argumento menos inteligente que eu já ouvi. As incertezas existem, mas nas duas direções. Pode ser que a gente dê sorte e as coisas sejam um pouco melhores, mas tem exatamente a mesma chance de a gente dar azar e as coisas serem piores.

Do ponto de vista da opinião publica, o que é conhecido sobre mudança climática é o relatório do IPCC de 2007 e o filme do Al Gore. O relatório considerou a ciência produzida até 2004. Nestes últimos quatro anos e meio, houve muito mais recursos para a ciência de mudança climática do que em todas as décadas anteriores.

As notícias sobre mudança climática têm sido um pouco mais preocupantes do que aquelas do relatório do IPCC. Não se trata mais de discutir se é hora de começar ou não, e sim de reconhecer imediatamente o erro de não termos começado muitos anos atrás. Já pagaremos um elevado preço por termos demorado, em recursos e em vidas. Portanto, essa discussão não se coloca mais sequer do ponto de vista do princípio da precaução, não é mais como na Rio-92. Porque hoje já é possível dimensionar os custos envolvidos em qualquer postergação no combate à emissão de gases de efeito estufa ou no início dos trabalhos de planejamento para adaptação.

O Rio foi o primeiro município a fazer um inventário de emissões no ano 2000. De lá pra cá, o que tem sido feito? No governo anterior, foi estabelecido um protocolo de intenções de colocar esse trabalho no planejamento e participar da luta contra o aquecimento global. Na gestão atual, a política municipal de mudança climática foi incluída entre as prioridades estratégicas máximas, entendendo por isso não apenas o encaminhamento ao Legislativo de uma política municipal, mas o início dos trabalhos de planejamento de governo. E o planejamento entre as empresas e a sociedade civil sobre como atingir metas de redução de emissões – que eu não estou autorizado a divulgar – está em discussão técnica neste momento. As metas serão divulgadas antes da reunião de Copenhague pelo prefeito Eduardo Paes. Posso dizer que são ambiciosas.

O Rio de Janeiro foi também a primeira cidade brasileira a realizar um seminário (Rio – Próximos 100 anos), ao contratar estudos da academia, da UFRJ, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) sobre impactos da mudança climática na cidade. No momento, o professor Carlos Nobre, do Inpe, realiza estudo sobre impactos na região metropolitana e tanto a Secretaria de Meio Ambiente do Estado quanto a do município participam desse trabalho.

Mas o que significa isso em termos práticos? O que pode ser feito? O maior problema, claro, é a elevação do nível do mar e como isso atinge não apenas as populações mais vulneráveis, mas também a rede de infraestrutura, o sistema de saneamento, o de transporte e diversos outros.

O Rio tem um aspecto democrático de impactos, porque não só as populações mais pobres estão em risco maior, mas também a orla da cidade, onde moram ricos. É, mas tudo exige muito estudo. Copacabana, por exemplo, está a 1 metro e meio do nível do mar. Numa elevação como a prevista pelo IPCC, de 40 centímetros, na média, significaria o quê? Numa primeira olhada a gente descarta o catastrofismo. Copacabana não vai ser inundada.

Por outro lado, tem de afastar imediatamente em seguida uma ilusão ingênua de que não há problema. Em momentos que incluam maré cheia, com uma lua cheia, uma ressaca e uma tempestade – e essas coisas acontecem –, toda a infraestrutura de Copacabana vai ser forçada e até mesmo os prédios e as edificações privadas.

Então não é pensável que nas próximas décadas se possa começar a discutir a desocupação das áreas de beira-mar? Não, não é pensável nem necessário, porque a engenharia para resolver esses problemas é conhecida há muito tempo. Basta lembrar a Holanda. Os holandeses dizem que Deus fez o mundo em sete dias e só depois eles criaram a Holanda. Em 2009, a estimativa de 40 centímetros já é conservadora. Tudo indica que teremos uma elevação para algo como 1 metro até o final do século. Ainda assim, a tecnologia vai se aperfeiçoar muito, todo o litoral do mundo estará trabalhando nesse tema.

O que não pode deixar de haver é o planejamento democrático das decisões. Muitas praias nós iremos manter, outras talvez não seja o caso de manter. Quem decide isso? Esse não é um problema para a primeira década do século 21, mas já é um problema para a organização democrática das cidades na próxima década.

Um dos textos produzidos para o seminário Rio – próximos 100 anos sugere que toda e qualquer política pública deveria ser submetida a uma avaliação ambiental estratégica. O que precisa ser feito para viabilizar isso? Há dificuldades e há facilidades. Há certa resistência de corpos técnicos a aceitar que o clima mexe não apenas com a estratégia maior dos negócios ou da política pública, mas com o dia a dia do funcionamento das coisas. Isso acontece com as empresas também.

Por outro lado, há facilidades. Os corpos técnicos também são ansiosos por conhecimento e por missões na linha do que você falou: como é que eu aproveito esse problema para mudar uma realidade? Há alguns problemas que não encontraram solução nos últimos anos. Quem sabe, já que nós vamos ter que mudar mesmo por causa da crise climática, a gente não incorpora os valores mais recentes da sociedade.

A sua pergunta também se aplica ao político gestor, o grau de atenção que uma autoridade local tem para os problemas globais. No caso do Rio de Janeiro, que é uma cidade cosmopolita, global, e por acaso o prefeito Eduardo Paes é jovem, essa conexão é quase que imediata. Muitos outros prefeitos de cidades brasileiras têm assumido posições de liderança também. O prefeito (Gilberto) Kassab (de São Paulo) participa dos trabalhos da C-40, que é uma rede importante de cidades e mudanças climáticas, assim como Rio de Janeiro e Curitiba. Isso é importante, mas não é o mais importante.

O mais importante é a opinião pública, a cidadania, o eleitorado. O político se move de um modo geral pelo retorno daquele público a quem ele se dirige. E isso é o que tem acontecido em Muitos lugares do Brasil. É impressionante. Eu vou na escola pública mais carente do Rio, falo de mudança climática, e eu não estou falando grego. Estou falando de um assunto que as crianças conhecem.

A gente pode não ter instrumentos para medir, mas a minha experiência diz que estamos conseguindo resultados extraordinários. As pessoas sabem do tema. E é isso que sensibiliza a autoridade eleita.

Mesmo com o político tendo de pensar além do seu ciclo eleitoraladministrativo, com ações que remetem até ao final do século? Isso é a novidade do século XXI. Aplica-se de diferentes formas. Nos últimos três anos, houve declarações dos líderes mundiais de que a meta necessária seria em 2050 estarmos emitindo 50% do que emitimos hoje. Ora, em 2050 esses líderes não só não estarão mais no poder como nem sequer estarão vivos. De modo que uma declaração dessas é quase uma ofensa. Eu quero saber o que vai ser feito para 2020. Os líderes estão pressionados pela opinião pública mundial, pelas empresas, pelas ONGs, e é isso o que esperamos que saia em Copenhague. Não estou tão otimista, mas é isso o que esperamos.

O mesmo se aplica às autoridades locais. Por exemplo, nós estávamos conversando há pouco sobre o planejamento do sistema de dragagem para a baixada de Jacarepaguá, que não só não deve começar agora, porque não é urgente, como mais para a frente pode ser que se defina uma tecnologia mais eficiente. Mas tem que começar a planejar agora.

Quando o prefeito Eduardo Paes decide que vamos ter metas ambiciosas de redução das emissões de gases de efeito estufa, é uma decisão assim: “Vou impor custos aos cariocas agora, em nome de um futuro melhor para os cariocas”. Ou seja, um futuro em que ele não será prefeito. É inédito isso nas cidades, esse tipo de movimento. Ainda mais nas cidades do mundo que estão estabelecendo metas voluntárias, como é o caso de São Paulo, Rio de Janeiro, Toronto, Nova York, Paris.

Muitas vezes há decisões que aumentam o custo, como as de restringir o uso de carros no centro da cidade. Em paralelo você vai oferecendo transporte público, mas não há prefeito consciente no mundo que não tenha na cabeça que é preciso desestimular o uso não racional do automóvel.

Isso é um caso de adaptação também? Já que os escapamentos ajudam a aumentar a temperatura da cidade? Sim, esquentam o microclima local. E poluem o ar que se respira, aumentando os problemas de saúde. Mas as pessoas acham que engarrafamento é um problema que tem que ser resolvido com mais viaduto, mais viaduto, mais viaduto. É o contrário. É preciso tomar medidas de natureza política, cultural e didática.

Mas me permita apontar a outra face dessa moeda. Esta é a nova dinâmica do desenvolvimento econômico e tecnológico do mundo: a descarbonização. Isso já é possível afirmar, sem medo de errar. O que significa que o prefeito, o governador, o presidente que não tomar as medidas necessárias para que a gente vá nesta direção estará condenando suas economias e suas sociedades a não entrar na estrada do que será o desenvolvimento dos próximos anos e décadas. Não é só pelo lado da adaptação.

Grandes cidades deveriam adotar medidas restritivas como o rodízio de veículos que já existe em São Paulo, ou mesmo o pedágio urbano? Isso é inevitável. Inclusive pelo lado dos transportes, porque todos que trabalham com planejamento estratégico nessa área sinalizam claramente a tendência a um gargalo completo nos centros das cidades. Então bastaria a dinâmica dos transportes para dizer que o pedágio eletrônico de Londres, o fechamento da Broadway e muitas outras medidas em Nova York, o objetivo de uma Paris quase em carros… A coisa caminha por aí. É claro que o automóvel continuará a existir, porque ele dá uma mobilidade única. Mas o seu uso não inteligente deve ser desencorajado. Muitas cidades na Europa, por exemplo, simplesmente quase eliminaram as vagas no centro.

Código de obras é outro ponto importante? Fundamental. Tanto pelo lado de compras sustentáveis por parte do setor público, como também porque o código de obras será uma forma de estimular as práticas mais sustentáveis, como aquecimento solar de água, coleta de água de chuva, telhados verdes, telhados refletores.

Mas há muitas outras coisas a fazer. Internalizar o conhecimento de mudanças climáticas nos órgãos públicos é indispensável, porque algumas culturas terão que sofrer transformações. Por exemplo, há estudos da Unicamp sugerindo que podemos ganhar de 1 a 2 graus no microclima com arborização. A cultura de arborização das cidades é melhor em umas, pior em outras.

O Rio está um pouco melhor, mas o foco é paisagístico. Agora nós vamos precisar também de arborização para o enfrentamento de microclimas de calor. Por exemplo, a Favela da Maré. Qual é o roteiro desejável? Deixar o mercado resolver? Isso significa que todos os moradores da Favela da Maré terão ar condicionado, eles têm direito e vão ter que usar. Aí o risco de incêndio vai aumentar por causa de fiação, o orçamento doméstico vai ser afetado. Ou fazemos com que haja ar condicionado para os momentos muito quentes, ou podemos arborizar a favela e ganhar 2 graus centígrados, não é pouca coisa. Mas árvore demora a crescer. Então é bom plantar agora. E as espécies escolhidas…

Serão nativas? Não, não. Esse é um bom ponto. Todo reflorestamento é pensado com plantas nativas, o que faz sentido. Mas neste caso, sorry, pelo menos a minha opinião é usar a planta mais eficiente para resfriar o microclima e que gere menos custo à população local do ponto de vista de limpeza e de afetar a infraestrutura das casas por causa de suas raízes. Então, se alguém me aparecer aqui com uma planta vietnamita, que é a mais eficiente para isso, eu vou defender a planta vietnamita. Mas olha a quantidade de conhecimento que a gente tem de gerar para tomar as decisões certas.

Qual a sua opinião sobre a política municipal de mudanças climáticas aprovada em São Paulo? Há algum vínculo entre as duas cidades que justifique um intercâmbio ou mesmo uma ação integrada nesse tema? São Paulo está realizando o item mais importante do dever de casa, que é conhecer o assunto e tentar trazer isso para dentro das políticas públicas. Ou seja, não se trata apenas da lei encaminhada com a meta. Até porque a meta de São Paulo basicamente será atingida por um processo já totalmente em andamento, que é o tratamento do lixo que evita a emissão de gases de efeito estufa, queimando metano, transformando em energia.Felizmente, Rio e São Paulo, as maiores cidades brasileiras, estão bem na rede global de cidades. Mas a rede global de cidades está completamente atrasada, as cidades também, os países também. Então, mesmo aquelas cidades que estão performando o estado da arte atual ainda estão muito atrasadas em relação ao que é necessário, tanto para mitigação quanto para adaptação. Aquela que não desempenhar esse caminho se torna cidade anacrônica. E a competição será cada vez menor entre países e maior entre cidades.

São Paulo e Rio já estão se tornando uma conurbação de fato. Elas estão integrando seus mercados, até das pequenas e microempresas, de uma maneira insuspeita. Da mesma forma que há décadas os urbanistas chamam atenção para a necessidade de planejamento metropolitano, a sua pergunta faz todo sentido. É indispensável que os governos desses dois estados comecem a trabalhar de forma integrada em alguns setores. A natureza não está ligando a mínima para as fronteiras. Rio e São Paulo já têm questões ambientais comuns, como a transposição do Rio Paraíba do Sul. A mudança climática afeta a disponibilidade de recursos hídricos, de modo que uma análise desse tipo só faz sentido se for feita de maneira integrada pelas grandes redes de abastecimento.

É preciso evitar que se reproduzam coisas como Nova Orleans. Trabalhos científicos na Scientific American já descreviam tudo aquilo que iria ocorrer em Nova Orleans, caso houvesse um furacão de nível 5. E ninguém fez nada. O mesmo se aplica à mudança climática no caso das nossas cidades.

As projeções indicam que o Semiárido brasileiro passará a sofrer muito mais com as secas. Poderá haver um novo ciclo de migração em massa para as capitais do Nordeste ou mesmo do Sudeste? É uma excelente demonstração de que não apenas Rio e São Paulo têm de se integrar, como a política nacional de mudança climática precisa ter braços de planejamento regional e local, urbano. Para o Rio de Janeiro a migração é liquidamente negativa há duas décadas. Ou seja, embora haja um fluxo migratório do Nordeste, sai mais gente do que entra. Entretanto, se a gente olha as comunidades carentes, as favelas, os loteamentos irregulares, é o contrário. A migração líquida é positiva, vem mais gente de fora, especialmente do Nordeste. Mas há um processo em redução, porque o desenvolvimento brasileiro nesta primeira década do século XXI interiorizou-se um pouco mais. A taxa de natalidade no Brasil todo vem caindo e também lá.

Entretanto, o magnífico trabalho do Inpe de cenários de mudança climática regional no Brasil eliminou dúvidas sobre as projeções. O Semiárido brasileiro não vai existir. Ele vai se tornar árido. O que significa que as cidades daqui a 30, 40 anos terão passado por transformações radicais e impossíveis de vislumbrar olhando de 2009.

Mas seria o caso de preparar as metrópoles para um novo êxodo rural? É muito difícil, eu diria quase impossível, antecipar ações agora. A estrutura dos preços relativos vai se alterar radicalmente, a logística vai se alterar radicalmente.Eu acho que, mais importante do que preparar para essa possível migração, é preparar o planejamento da vida econômica, social e ambiental do Semiárido. É pouco inteligente que todas as ações de planejamento no Nordeste brasileiro deixem de considerar desde hoje as mudanças climáticas, por exemplo, no projeto de transposição do São Francisco. Da mesma forma, aspectos socioeconômicos devem ser pensados com base nesse conhecimento. Enfim, se você der escola para as mulheres, elas terão menos filhos.

É mais fácil negociar políticas climáticas em nível local do que em Copenhague? É igualmente desafiador. Não é diferente. Porque as contradições do modo de vida atual aparecem tanto no plano local quanto nos planos nacional e global. Toda mudança implica custos. A disposição de enfrentar esses custos com base na consciência de um problema que vai se tornar muito grave é uma construção política do pensamento. E na ação é muito difícil, como é, no plano global, a mudança da matriz energética. No plano local, embora haja algumas win win policies (políticas de ganha-ganha) – ninguém sai perdendo ao tratar o lixo em termos do século XXI –, modificar os modais de transporte enfrenta muita resistência daqueles que têm mais poder na sociedade.

Aquela máxima do século XX, “pensar global, agir local”, hoje tem de ser entendida com duas mãos. Também há que se “pensar local, agir global”. Porque mesmo que o Brasil zere o desmatamento na Amazônia, se o resto do mundo não fizer o dever de casa, nós perderemos metade da Amazônia. Se o Rio de Janeiro fizer tudo que precisa e o nível do mar continuar a subir, o Rio como o conhecemos deixará de existir. É um mundo em que as inovações da internet colocam todos nós em contato, o que aumenta muito as nossas redes. Nós também podemos desenvolver redes locais que tenham grande impacto global.

Veja na coluna ao lado vídeo da Hora de Acordar Global, realizado pela campanha TicTac em São Paulo.

O FUTURO DAS CIDADES NA NOVA ORDEM GLOBAL

POR : Tarso Genro

I
As cidades e as megalópoles constituem o centro de articulação política e cultural da modernidade. O papel que elas ocuparão a partir do caos mutante, gerado pela globalização neoliberal, ainda está por ser resolvido. "As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos" - diz Italo Calvino, no seu livro "Cidades Invisíveis". Os muros que as cercavam, na antiguidade, e os condomínios fechados da cidade "pós-moderna" são reflexos do medo. O inimigo está do outro lado do muro: sempre reinventado, para garantir os que podem transformar o medo em necessidade e o desejo em separação.

As grandes cidades hoje constituem-se como territórios que contêm os elos de uma relação comutativa com o mundo. Por elas transita uma socialização novo tipo, baseada no tempo virtual e numa nova concepção de espaço, onde as partes desintegradas são sempre novas e cada vez menos surpreendentes. Elas são o lugar físico onde as partes do espaço fragmentado compõem mega-espaços locais e globais ao mesmo tempo. Neste não-lugar fluem as formas fantásticas do capital.

A construção da cidade reflete a construção ordenada da exclusão, tendo como base a aceitação da exclusão e sua colocação dentro de uma "ordem" urbana. Mike Davis relata, de forma emblemática, o seguinte retrato de Los Angeles a partir de um episódio circunstancial: "Assim o diretor da Comissão de Planejamento da cidade explicou a linha oficial para repórteres incrédulos, não é contra a lei dormir na rua per se, ‘só quando se ergue alguma espécie de abrigo’. (...) esta repressão cínica transformou a maioria dos sem-teto em beduínos urbanos. Eles são visíveis em todos os lugares do Centro, empurrando seus poucos e patéticos pertences em carrinhos de supermercado roubados, sempre fugitivos em movimento, espremidos entre a política oficial de contenção e o sadismo progressivo das ruas do Centro"[1].

Para que a cidade possa ser objeto de uma nova subversão democratizante, que tenha o mesmo potencial constitutivo da Ilustração, é preciso enquadrá-la numa perspectiva de projeto político de sociedade, ou melhor, de um novo projeto civilizatório, numa nova proposta de ordem. O rei da Espanha, nas suas instruções de 1513, para a conquista da "Terra Firme", que abre o violento processo colonial, fixa o sistema que desenhará o futuro das cidades com base na sua visão de "ordem", que mescla medo e desejo: "vistas as coisas que para os assentamentos dos lugares são necessárias, e escolhido o lugar mais proveitoso e em que abundem as coisas que para o povo são necessárias, tereis de repartir os solares do lugar para fazer as casas, e deverão ser repartidos conforme as qualidades das pessoas e serão inicialmente dados por ordem: de maneira que feitos os solares, o povo pareça ordenado, tanto no lugar que se deixe na praça, como o lugar que tenha a igreja, como na ordem que tiveram as ruas; porque os lugares que, de novo se fazem, dando a ordem no começo sem nenhum trabalho nem custo ficam ordenados e os outros jamais se ordenam"[2].

Para discutir o destino da cidade globalizada - portanto - é necessário, antes, responder o que faremos do nosso destino social coletivo. Qual a "ordem" que disporá, no tabuleiro da sociedade, a aceitação ou não da exclusão e as hierarquias do medo? Nesta ordem vai vingar um desejo movido pela solidariedade que subordina o medo, ou ele - medo - espontaneamente será "contenção" e "sadismo".

A compreensão do destino desejado e humanizado abrirá o espaço político necessário para um novo tipo de harmonia: ou a cidade é subjetivada pela comunidade, que deseja assim "re-finalizar" o seu modo de vida, dar outra finalidade para a sua existência (diversa dos processos semibárbaros da pós-modernidade)[3], ou a cidade será a ordem da desordem: uma cidade hierarquizada pela força à beira de um caos sempre iminente.

O processo social urbano - a composição política do mundo urbano - está hoje tragicamente retratado por cidades como Los Angeles, modelo extremo da barbárie refrigerada. Lá o caos mutante, a cidade sempre outra, joga os cidadãos vítimas da exclusão e do "fascismo societal" para "espaços que não podem ser vistos"[4], para que uma outra parte da cidade possa fruir a paz: "Trata-se da segregação social dos excluídos através de uma cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas. As zonas civilizadas são as zonas do contrato social, que vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens. Para se defender, transformam-se em castelos neofeudais, enclaves fortificados que caracterizam as novas formas de segregação urbana (cidades privadas, condomínios fechados, gated comunities). A divisão entre zonas selvagens e zonas civilizadas está a transformar-se num critério geral de sociabilidade, um novo espaço-tempo hegemônico que atravessa todas as relações sociais, econômicas, políticas e culturais, e que por isso é comum à ação estatal e à ação não estatal"[5].

Hoje as cidades deixaram de ser os espaços físicos de uma burguesia estável, enraizada no passado, com o seu peso político e cultural moldado nas revoluções industriais clássicas. Embora seja possível, ainda, encontrar os vestígios da cidade burguesa sólida e confortável e assim registrá-los como memória, no caldeirão desordenado, caótico ou frígido do mundo pós-moderno, as mesmas classes dominantes já são outras. Elas escondem-se num "aquário de formas flutuantes, evanescentes - os projetistas e gerentes, auditores e zeladores, administradores e especuladores do capital contemporâneo: funções de um universo monetário que não conhece rigidez social ou identidades fixas"[6].

Esta evanescência, que vem da nova fluidez mercantil e da provisoriedade permanente do modo de vida sem raízes e cada vez mais apenas centrado no presente (com as suas súbitas interrupções da estabilidade cotidiana), - esta evanescência - cria uma articulação social que é tensionada, de forma exacerbada, "de fora" do controle subjetivo da comunidade nacional. É impossível - em conseqüência -, neste contexto, pensar o futuro das cidades sem pensar naquilo que Altvater denominou de "autoridade política do mercado mundial" e, também, na crise ecológica como elemento que implica em interferir na "forma e substância da democracia"[7].

Tudo vem "de fora" porque a mundialização do capital organiza-se e se faz a partir dos "megaespaços urbanos", diferenciados por sua localização física e sua história. "Espaços que irradiam sua preponderância civilizatória, impelidos pela ação, no seu interior, de grupos dinamizadores com tradições culturais diversificadas e forte identidade. Esses espaços-cidades concentram e agregam funções - financeiras, industriais, científicas, tecnológicas, culturais e políticas - que se articulam e se inter-relacionam ‘por sistemas de formação que fornecem os quadros e os dirigentes das empresas e dos Estados’. Os espaços são articulados, essencialmente, em torno das grandes megalópoles do eixo Norte-Norte, os quais, por sua vez, se vinculam, de forma seletiva, com centros de poder na megalópoles no eixo Sul-Sul"[8].

Do ponto de vista ecológico, as exigências de depredação natural, imprimidas pelas novas tecnologias, impossibilitam o exercício da cidadania como cidadania puramente nacional, pois os efeitos desta depredação não respeitam fronteiras. Do ponto de vista das novas relações mercantis, instauradas pela "globalização", os próprios sistemas autoritários perderam a sua capacidade de ordenamento, porque a força normativa do Estado vem diretamente do movimento do capital financeiro, tornando irrelevante a autoridade interna.

Os "procedimentos democráticos que foram instaurados e "referendados" pela nova ordem (também) são vistos como questionáveis, pois as extensões de tempo (períodos múltiplos de 10 mil anos de meia-vida para o material nuclear) e espaço (cruzando todo o planeta) tornaram-se muito grandes para a "dimensão humana" que acompanha "a tomada de decisões racionais"[9].

A reação predatória é cada vez mais forte. O "Apelo de Heideberg", assinado por 264 cientistas (vários Prêmios Nobel entre eles) que designa o movimento ecológico como um novo tipo de irracionalismo (por confrontar com o progresso científico e da indústria), condensa magnificamente a irrelevância que o neoliberalismo outorga à depredação do estoque natural e deixa clara a sua visão política de supremacia absoluta do mercado, como elemento fundante de uma nova ordem mundial do capitalismo globalitário[10].



II



A aceleração da urbanização global, nos últimos 30 anos, dá-se de forma concomitante a um processo de concentração de renda e poder. Principalmente - para usar a classificação de Arrighi - nos países da "periferia" (como Serra Leoa e Panamá) e da "semiperiferia" (como o Brasil e a África do Sul).

A concentração de poder está determinada principalmente por dois fatores: a) a nova força "normativa" do capital financeiro, que controla a economia global, sujeita os Estados nacionais, política e juridicamente, para harmonizar o desenvolvimento econômico interno com o novo processo de acumulação; para isso exige uma alta coesão das elites locais em torno do "caminho único" globalitário; b) a incapacidade, da representação política do Estado Moderno, de criar uma coesão social baseada em valores universais, que apontem a solidariedade e a condição de menos desigualdade, como elementos permanentes de uma ordem democrática; por isso a ordem atual está permeada pela ideologia neoliberal, cujos agentes defendem a eficiência como valor que subsume a solidariedade;

A redução da força decisória da política sobre o espaço nacional, assim impelida pela força constitutiva do capital financeiro global, vem impulsionando um retorno ao "localismo". Este, ora é apanhado como "ponto de partida" contestatório do neoliberalismo, ora é apanhado (através de uma linguagem supostamente de "esquerda") como política de adaptação. Neste caso o localismo passa a ser um palco privilegiado dos sujeitos políticos tradicionais e de uma crítica niilista do Estado, a partir de uma nebulosa noção de "sociedade civil".

A sociedade civil - na hipótese - não é compreendida como um lugar para a articulação de decisões políticas de controle sobre o Estado, para reforçar a autoridade do Estado e processar a democratização das políticas públicas. Ela é vista, apenas, como um "locus" de auto-organização da sobrevivência, de "costas" para o Estado.

Por esta concepção, a cidade passa a ser o refúgio da "boa política" e do "bom governo", sem que o país seja assumido como unidade macropolítica. A cidade, como unidade política mínima, então abdica de ser um novo sujeito, capaz de integrar uma disputa global e, conseqüentemente, de ser sujeito ativo na construção de um projeto nacional, que confronte com os interesses subjacentes à ordem globalitária.

A sociedade civil, deferida como espaço de pura "autonomia" sem Estado, e a cidade, como "locus" particular, como se ela fosse uma nova unidade voltada só para si mesma (capaz de humanizar-se sem vínculos com o mundo e o país), são duas possibilidades de uma ideologia que compõe a fragmentação pós-moderna: "Esta volta ao local é uma reação teórica contra as teorias centralistas e um refugio das identidades quando estas deixam de ter como referência o Estado. Na época fordista, o Estado se associava à Nação e tinha, portanto, um importante papel, não só na produção, na prestação de serviços ou na distribuição de recursos, mas também na produção de identidade, criava um sentimento de pertencimento"[11].


III



*A mudança estrutural dos padrões de acumulação, via 3a. Revolução, da informática, microeletrônica, biogenética - revolução na informação, comunicação e produção - aprofunda as diferenças entre os países capitalistas desenvolvidos e os países sub ou não desenvolvidos. Ela também agrava as diferenças internas nos próprios países centrais, concentra renda em escala mundial e gera a possibilidade de desemprego estrutural de largo fôlego. As modificações na geografia humana das cidades refletem tudo isso.

A instabilidade da oferta de trabalho gera populações migrantes, destruindo laços históricos, tradições e culturas. Exporta culturas e conflitos para o espaço das grandes cidades, onde os fragmentos tornam-se unidades que ordinariamente conflitam entre si.


Do ponto de vista da esquerda, o fim do período revolucionário aberto com a revolução russa - o seu descambar para uma vertente anti-humanista totalitária - faz emergir uma crise radical de paradigmas. A "melancolia" detonada pelo presumido "fim das utopias" proporciona a busca de experiências puramente individualistas (para solucionar o conflito com o mundo vivido) ou práticas que buscam alternativas microrrevolucionárias.

Nas cidades este fenômeno ordinariamente apresenta-se como política marginal e auto-referente. Nestes horizontes, agora, não se põe mais o humanismo libertário, mas uma simples solução do conflito do indivíduo ou do grupo, com o mundo vivido no presente. A afirmação das subculturas de tribos, "gangs", grupos alternativos, são respostas pós-modernas à não efetividade da razão. Aliás, "a completa e, agora, patente subordinação da política aos ditames mais imediatos do determinismo econômico da produção do capital é um aspecto vital dessa problemática. Esta é a razão porque o caminho para o estabelecimento de novas instituições de controle social deve passar através de uma radical emancipação da política do poder do capital"[12].

Trata-se de uma perda de autonomia que implica em submissão de toda a ação política do Estado e das políticas urbanas dos grandes centros às fatalidades do ajuste. Tais conseqüências ensinam à população "que o Estado isolado não é mais suficientemente capaz, com suas próprias forças, de defender seus cidadãos contra efeitos externos de decisões de outros atores ou contra os efeitos em cadeia de tais processos, que têm origem fora de suas fronteiras."[13]

O futuro das cidades, portanto, e o futuro do Estado nacional, são futuros que ainda estão determinados um pelo outro, embora o Estado com características e papéis diversos, e a cidade, com outra potencialidade política nacional e internacional.

Nas grandes concentrações urbanas já funcionam visivelmente duas ordens. Uma ordem jurídico-formal que emana da Constituição, e outra ordem que vem da Constituição, mas é mediada pela força normativa dos poderes reais, nas zonas pobres ou marginalizadas. Nelas a força do Estado - pela política - atua segundo um código não escrito, no qual a sanção precede o conhecimento do conflito e até mesmo o constrói.

A estabilidade é a instabilidade tensa, controlada pelo aparato estatal que é freqüentemente licenciado informalmente do cumprimento da lei.

Esta instabilidade está, hoje, integrada na nova psicologia das massas urbanas, onde à explosão de violência sucedem períodos de passividade tensa: "as nossas sociedades atravessam um período de bifurcação, ou seja, uma situação de instabilidade sistêmica em que uma mudança mínima pode produzir, de modo imprevisível e caótico, transformações qualitativas. A turbulência das escalas destrói seqüências e termos de comparação e, ao fazê-lo, reduz alternativas e cria impotência ou promove passividade" [14].

O programa para uma cidade democrática é opor-se a esta aparente espontaneidade em curso, de maneira a que a cidade transcenda-se além do local: recoesionamento social, pela instauração de novos procedimentos democráticos que combinem a democracia representativa, estável e previsível, com a democracia direta de participação voluntária; controle público das frações do Estado presentes na cidade - lugar onde a cotidianidade se realiza e a globalização se localiza -; impulsionamento à expressão das novas e antigas identidades na cena pública, de maneira a valorizá-las e contratualizá-las: eis os movimentos centrais de uma nova política local que não seja "localista", pois cada uma destas questões tem vínculos com a universalidade do Estado e com as relações do próprio país (em que a cidade se situa) com o mundo globalizado.

Premissas para um novo Contrato Social da modernidade, estes movimentos - como movimento da sociedade civil na esfera política e como políticas públicas na esfera do Estado - podem combater a fragmentação e radicalizar a democracia tornando-se, inclusive, experimentos utópico-realistas para um novo projeto de sociedade.

A construção da barbárie ou da utopia, de uma civilização de selvageria ou de, pelo menos, uma vida mais sensata, dependerá muito do que fizermos nas cidades e, decisivamente, do que faremos das cidades. John Cassavetes dizia que o ideal de um casal deveria ser o mesmo de um bom filme: um processo caótico, no qual não se mascara nenhuma crise, mas que acaba tirando vantagem da sua instabilidade fundamental, para chegar à emoção verdadeira[15].


As cidades simbolizam, hoje, a instabilidade fundamental, por isso só nelas podem ser provadas as emoções verdadeiras. É sobre estas que a humanidade constrói as suas alternativas, o que implica em compreender que tanto a revolução como a reforma iniciarão e terminarão nas cidades: forma definitiva de organização da civilização, pelo menos por um largo período, sobre cujo desfecho não é possível dizer mais nada.



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[1] DAVIS, Mike. "Cidade de Quartzo - escavando o futuro em los Angeles". São Paulo: Ed. Página Aberta Ltda, 1993, p. 215

[2] RAMA, Angel. "A cidade das letras". São Paulo: Editora Brasiliense SA, 1985, p. 27.

[3] GUATTARI, Félix. "Restauração da cidade subjetiva". In: Jornal do Brasil, 29/07/90, Idéias/ Ensaios

[4] CERTEAU, Michel de. "Andando na Cidade". In: Revista do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, número 23 / 1994, p. 23.

[5] SANTOS, Boaventura de Sousa. "Reinventar a democracia". In: A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, p. 52.

[6] ANDERSON, Perry. "As Origens da Pós-Modernidade". Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 101.

[7] ALTVATER, Elmar. "Os desafios da globalização e da crise ecológica". In: A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, p. 120.

[8] DREIFUSS, René Armand. "A época das Perplexidades - Mundialização, Globalização e Planetarização: Novos Desafios". Petrópolis (RJ): Ed. Vozes, 1996, p. 153.

[9] Idem. Pág. 121.

[10] RAMONET, Ignacio. "Geopolítica do caos". Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 1998, p. 81.

[11] ESPERON, Alicia Veneziano. "La Descentralizacion en las Ciencias de lo Urbano". Montevideo, Facultad de Ciencias Sociales - Universidad de la Republica Oriental del Uruguay, 1997, p. 71.

* Os cinco próximos parágrafos com modificações secundárias estão em: GENRO, Tarso. "A pobreza como desafio à política: o PT".

[12] MÉSZÁROS, István. "A necessidade do controle social". São Paulo: Ed. Ensaio, 1987, p. 56.

[13] HABERMAS, Jürgen. "Nos limites do Estado". In: jornal Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 5-4, 18/07/99.

[14] SANTOS, Boaventura de Sousa. "Reinventar a Democracia". Lisboa (Portugal): Fundação Mario Soares, set./1998, p. 19.

[15] JOUSSE, Thierry. "John Cassevetes". Madri (Espanha): Ediciones Cátedra AS, 1992, p. 63

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