Parte 2: Geografia política da água e seus recursos de poder no início do século XXI.



Meio ambiente e poder


Quando se trata das novas fontes de poder para os Estados, é preciso antes observar as mudanças ocorridas nos últimos trinta anos do século XX, em que a détente das relações bipolares entre as superpotências abriu espaço para que novos temas fossem incorporados à agenda internacional. Temas estes que tiveram ampla discussão à época, estruturaram-se a despeito das profundas alterações sistêmicas, e ganharam status de estratégicos no pós Guerra Fria. Neste sentido, podem ser apontados como dotados destas qualidades e, configurados como novas fontes de poder para os Estados, o meio ambiente (em seu aspecto amplo) e a energia (que recebe especial atenção após os “choques do petróleo” da década de 1970).

De mesmo modo, ambas trazem consigo uma capacidade importante no que se refere à análise da conversão de poder potencial em poder real, e sua aplicação nas relações internacionais, de acordo com o apresentado Joseph Nye (1990, p. 178):

Power conversion is a basic problem than arises when we think of power in terms of resources. [...] Power conversion is the capacity to convert potential power, as measured by resources, to realized power, as measured by the changed behavior of others.

A temática ambiental engendrou intenso debate sobre as opções de política internacional a serem adotadas pelos Estados. Também, o dinâmico processo de ajustes de poder e interesses internacionais abriu uma janela de novas oportunidades e possibilitou que novos países fossem alçados a posições de destaque no cenário internacional. Ademais, as regras estabelecidas nas diversas conferências realizadas sobre o tema serviram para evitar que as ações humanas desencadeassem uma catástrofe em escala mundial, e também para manter o status quo da divisão do poder mundial. Aliás, esse aspecto tem sido denunciado por alguns setores mais nacionalistas como um poderoso discurso que pode também contribuir para uma renovada política de “congelamento” do poder mundial (RIBEIRO, 2008, pp. 109-112).

Não é rara a associação simplista que se faz da questão ambiental à segurança. Como aponta Lorraine Elliot (1998), muitos autores limitam seus argumentos ao fato de que os processos naturais são suficientes para explicar os impactos e suas conseqüências às unidades políticas. Tais autores entendem que a questão ambiental em caráter internacional não pode ser vista dentro de uma dimensão estratégica.

Ledo engano, ao conceber o meio ambiente (em sua diversidade de elementos componentes, como provedor de energia limpa e renovável, emissões de carbono, biotecnologia, biodiversidade, entre outros) como uma variável estratégica os Estados ganham uma ferramenta de poder de considerável peso em tempos de reconfiguração das relações internacionais.

De acordo com o geógrafo Wagner Costa Ribeiro, “trata-se da visão estratégica, que admite os recursos naturais como vitais à sobrevivência da população de uma unidade política e que, portanto, reforça o conceito de soberania das unidades na gestão de seus recursos” (RIBEIRO, 2001). Em termos geopolíticos, autores como Claude Raffestin (1993) e Ray Cline (1975, 1994) já definiam os recursos naturais como um dos elementos que devem ser ponderados no cálculo de poder. No entanto, este último não o considerava uma fonte de poder, como se faz agora.

Os temas da escassez de recursos naturais necessários à reprodução da vida (direito ambiental internacional e desenvolvimento sustentável) e a ameaça à sobrevivência dos atores (segurança ambiental internacional) estruturam a nova interface do sistema internacional. A negociação e implementação de tratados, acordos, convenções e a realização de reuniões internacionais com agendas amplas e complexas dão os contornos às discussões multilaterais imersas em conflitos e contradições.

A referência à assimetria de poder internacional para asseverar a existência de uma disputa das potências pelos estoques das riquezas naturais, uma vez que a distribuição geográfica de tecnologia e de recursos é desigual. Também, as tensões se dão pelo fato de que enquanto as tecnologias avançadas são desenvolvidas nos Estados centrais, as reservas naturais (principalmente biogenéticas) estão localizadas nos países periféricos.


Ao largo das discussões sobre meio ambiente, que levam ao lugar comum da preservação, do conservacionismo, e da já desgastada plaqueta da sustentabilidade (que se prega desde reuniões de empresários do agronegócio até em passeatas em prol das baleias), entender o tema como variável componente dos cálculos de poder do sistema internacional lança luz sobre novas maneiras de entender como a geografia política do mundo tem se desenhado após o final da Guerra Fria. Isto se dá pelo fato de que a temática ambiental possui lugar próprio na cena internacional e, com segurança, ter adquirido status de tema prioritário da agenda internacional. Prova clara tem-se no fato de o governo do Estados Unidos (EUA), em 2010, ao publicar sua National Security Strategy, considerar que:


[...] Dependence upon fossil fuels constrains our options and pollutes our environment. Climate change and pandemic disease threaten the security of regions and the health and safety of the American people (USA, 2010, p. 8).[...]


We welcome Brazil’s leadership and seek to move beyond dated North-South divisions to pursue progress on bilateral, hemispheric, and global issues. Brazil’s macroeconomic success, coupled with its steps to narrow socioeconomic gaps, provide important lessons for countries throughout the Americas and Africa. We will encourage Brazilian efforts against illicit transnational networks. As guardian of a unique national environmental patrimony and a leader in renewable fuels, Brazil is an important partner in confronting global climate change and promoting energy security (USA, 2010, pp. 44-45).

Sob esta ótica, as menções ao meio ambiente aparecem atreladas à outra nova fonte de poder no cenário internacional, a energia:

As long as we are dependent on fossil fuels, we need to ensure the security and free flow of global energy resources. But without significant and timely adjustments, our energy dependence will continue to undermine our security and prosperity. This will leave us vulnerable to energy supply disruptions and manipulation and to changes in the environment on an unprecedented scale.


The United States has a window of opportunity to lead in the development of clean energy technology.If successful, the United States will lead in this new Industrial Revolution in clean energy that will be a major contributor to our economic prosperity. If we do not develop the policies that encourage the private sector to seize the opportunity, the United States will fall behind and increasingly become an importer of these new energy technologies.


We have already made the largest investment in clean energy in history, but there is much more to do to build on this foundation [...] (USA, 2010, p. 30).


A introdução de ambas componentes como basilares da nova dimensão estratégica das relações internacionais traz uma nova possibilidade ao estudo dos recursos hídricos. Todavia, de modo não simplista cabe aqui interpretar este elemento não como pertencente à massa de recursos naturais, em sua forma bruta, pretendemos entendê-los como estoques de poder, assim como as reservas biogenéticas o são.

Ora, se devido à grande expansão urbana, a industrialização, a agricultura, a pecuária intensiva e ainda à produção de energia (elétrica, em refinarias, em usinas nucleares, etc.) – que estão estreitamente associadas à elevação do nível de vida e ao rápido crescimento populacional – crescentes quantidades de água passaram a ser exigidas e os conflitos em torno dos recursos hídricos já se mostraram intensos, o cenário futuro não parece melhorar. Em 2000, o mundo usou duas vezes mais água do que em 1960. E as previsões revelam que este número não parará de crescer. Com efeito, tais fatores tornam a água um recurso naturalmente estratégico para qualquer país do mundo (SALATI, 2010, p. 20).

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