O apelo do embaixador ucraniano foi claro. Em artigo publicado na imprensa brasileira, Rostyslav Tronenko pediu que o Brasil não fique em silêncio diante da anexação da Crimeia pela Rússia – considerada ilegal por ele e grande parte da comunidade internacional.
"Se isso for feito com a Ucrânia, qualquer coisa pode ser feita para qualquer outro país. Se for permitido que isso aconteça, então não existem regras e não há leis”, escreveu.
A última manifestação da diplomacia brasileira foi na última quarta-feira (19/03), numa nota protocolar dizendo que a crise deveria "ser equacionada pelos próprios ucranianos". A posição foi reforçada, no mesmo dia, pelo chanceler Luiz Alberto Figueiredo em Paris. Enquanto seu colega francês Laurent Fabius reforçou a condenação ocidental ao referendo na Crimeia, o brasileiro preferiu a neutralidade.
O silêncio brasileiro diante da maior crise entre Ocidente e Moscou desde o fim da Guerra Fria reflete a política de não ingerência em assuntos internos de outros países adotada pela presidente Dilma Rousseff desde que chegou ao Planalto. Um contraponto em relação a seu antecessor: Lula participou ativamente, por exemplo, na busca por uma solução para a crise nuclear iraniana – quase chegando a um acordo – e em negociações sobre o conflito entre israelenses e palestinos.
"O Brasil está invocando uma noção vaga de 'não ingerência', um posicionamento que apresenta claras incongruências com o que o Brasil desempenhou em crises na América Latina, além de uma inflexão quanto ao papel que projetava para si durante o governo Lula", opina Marcos Troyjo, diretor do BricLab da Universidade de Columbia (EUA) e professor do Ibmec/RJ.
O especialista diz ainda que o Brasil, não apenas pela crise na Crimeia, vem perdendo brilho no cenário internacional. Há, para ele, percalços que abrangem três campos das relações internacionais: o econômico-comercial, o político-militar e o dos valores. E as consequências, afirma, são grandes: o “soft power” brasileiro irradia com menos força.
Em linha com Pequim
Condenado com firmeza por todas as potências ocidentais, o referendo foi uma violação clara da Constituição ucraniana – que dá apenas ao Congresso em Kiev o direito de convocar consultas do tipo e com a garantia de que seja realizado em nível nacional.
A votação expressiva de 97% a favor da separação também foi colocada em questão – a população de origem russa da península é de cerca de 60%. Além disso, o referendo ocorreu sob forte presença militar da Rússia, e observadores internacionais foram impedidos de fiscalizá-lo.
Mesmo Pequim se afastou de dar qualquer apoio público a Moscou, seu aliado de longa data. Em votação no Conselho de Segurança da ONU, a China, que também enfrenta questões separatistas em seu território, optou por um voto de abstenção: não ficou nem ao lado do Ocidente nem da Rússia.
"A abstenção da China e a ambiguidade brasileira são muito parecidas. Os chineses, ao se absterem, dizem que não estão de um lado nem do outro. A melhor explicação para a dificuldade brasileira está justamente nessa posição chinesa", diz o ex-ministro de Indústria e Comércio José Botafogo Gonçalves, vice-presidente emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
Como a China, a economia brasileira tem também na Rússia um importante parceiro comercial. Botafogo Gonçalves lembra, ainda, que o Brasil sempre procurou fugir da dicotomia direita-esquerda, mostrando-se a favor da multipolaridade nas relações internacionais. E os Brics – formado também por Índia e África do Sul – são um reflexo dessa política.
“A Rússia é parte importante nesta dinâmica. O Brasil gosta de pensar em si, nos Brics e em outros países em desenvolvimento não apenas como ‘mercados emergentes’, mas como ‘potências em ascensão’, conceito que vai além de questões financeiras e inclui também importância política e peso regional”, afirma Troyjo.
O especialista em Brics da Universidade de Columbia lembra que o grupo está em fase avançada de negociação para a criação de um banco de desenvolvimento para financiar projetos de infraestrutura nos cinco países. O projeto pode ser fechado já na próxima cúpula dos Brics, marcada para julho em Fortaleza.
Comércio bilateral crescente
Os interesses brasileiros em se calar perante a Rússia, segundo analistas, não são pequenos. O Brasil é o maior parceiro comercial dos russos na América Latina, e espera-se que o comércio entre os dois países aumente dos atuais 6 bilhões de dólares ao ano para 10 bilhões de dólares até o fim da década.
Entre os principais produtos comercializados entre os dois países, a Rússia vende equipamentos da área aeroespacial, de energia nuclear e fóssil, além de químicos e fertilizantes. Por sua vez, o Brasil vende carnes bovina, suína e de frango, além de soja, açúcar e outros produtos agrícolas. A presidente Dilma Rousseff esteve em dezembro de 2012 na Rússia para fortalecer os laços entre os dois países e se encontrou com o presidente Vladimir Putin e o premiê Dimitri Medvedev.
“Não vejo como o Brasil tomar uma posição antagônica à da Rússia, inclusive pelos interesses que unem os dois países – econômicos, de parceria estratégica e cultural – especialmente no que se alude à consolidação do grupo dos Brics”, afirma Gilberto Ramos, presidente da Câmara de Comércio Brasil-Rússia.
Apesar das críticas, o silêncio do Brasil sobre a situação na Crimeia não deve implicar custos políticos, segundo Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC-SP. Quem demonstra neutralidade, diz o especialista, pode ser um futuro mediador da crise.
“Quem critica abertamente é aquele que tem ficha para gastar. O Brasil não pode ter atitude semelhante à do Reino Unido e da Alemanha. O país não tem essa estatura e, também, não está diretamente envolvido”, opina Nasser.