Levantes populares pelo mundo.


 Entre tendências globais e causas locais, por Erlene Maria Coelho Avelino



O ano de 2011 ficará marcado pelas multidões que tomaram as ruas em diversas partes do mundo em busca de direitos, justiça social e democracia. O sistema político internacional entrou em um verdadeiro estado de turbulência, pois não só o Oriente Médio e o norte da África com a Primavera Árabe entraram em ebulição como também países ocidentais considerados democráticos. 

Como exemplos dessas manifestações, podem-se citar os recentes protestos estudantis no Chile contra o atual sistema educacional e o amplo movimento organizado pela “Democracia Real Ya” na Espanha. Além disso, tem-se situações extremas de caos como os tumultos violentos que ocorreram em diversas cidades inglesas, que apesar das múltiplas causalidades e de ter menores conexões do que os outros dois citados acima, também são sinais de “patologia social”.
Esses movimentos diferem muito entre si, são específicos aos contextos locais e não formam uma rede de conexão comum. Contudo, não deixam de compartilhar características que permitem que se olhe para essas agitações populares dentro de um mesmo escopo da conjuntura internacional. Além do estilo de manifestação com praças ocupadas, acampamentos, assembléias e movimentos de resistência, permeiam na maioria desses protestos o uso de mídias sociais, a participação dos jovens, a dispersão do movimento para outros setores da sociedade e a horizontalidade devido a não hierarquização dos movimentos.
 A Primavera Árabe não é o fator desencadeante para as outras manifestações ocorridas no mundo, mas teve impacto sobre essas servindo principalmente como inspiração para a organização dos protestos. Na verdade, o que mais une esses manifestantes é um sentimento de insatisfação com instituições como o Estado e o mercado. Essa situação é fruto de uma crise de legitimidade institucional que decorre no mundo.
Pode-se dizer que há uma tendência global por maior representatividade da sociedade civil tanto no âmbito doméstico como no internacional. Ademais, a crise econômica e suas respostas geraram um desconforto com as instituições financeiras internacionais e com as regras de mercado atual. A visão é que de alguma forma, essas instituições, com suas peculiaridades em cada país, ao invés de contribuir, privam os cidadãos de direitos individuais e coletivos.
Essa turbulência internacional demonstra o quanto o mundo é dinâmico e isso se deve, especialmente, a presença de vários atores com mentalidades distintas entre si. Observa-se que essa dinamicidade apontada aqui não provém, necessariamente, de um nível macro, no caso, o sistema internacional, mas, principalmente de um nível micro correspondente a esses grupos de manifestantes em seus contextos locais. Em um plano macro tem-se a crise econômica, que afetando as nações de maneiras distintas, gerou cenários diferentes nos níveis micros. Como o nível micro e macro, interagem mutuamente, esses levantes populares também podem afetar os critérios de legitimidade do sistema internacional, levando a uma maior atuação de redes transnacionais de movimentos sociais. Ao se tentar mudar os contornos das sociedades, logicamente pode-se alterar o contorno do sistema internacional. Dessa forma, apesar das diferenças, as manifestações almejam a construção de uma nova realidade. Essa nova realidade corresponde a uma maior representatividade dos indivíduos e subgrupos tanto no nível micro como no macro.
Uma autoridade necessita ser legítima para conseguir obediência sem necessitar recorrer à coerção, assim deve haver um consenso entre os indivíduos de uma determinada sociedade para aceitar a autoridade vigente. Para isso, os líderes devem agir em prol da coletividade. Atualmente, ainda encontramos critérios tradicionais de legitimidade em muitos Estados e o carisma ainda se apresenta como um fator determinante, apesar das quedas de popularidades dos países onde estão ocorrendo os protestos. Entretanto, o mundo demanda cada vez mais critérios racionais de legitimidade. Na Primavera Árabe, por exemplo, em monarquias hereditárias e repúblicas, os presidentes estavam preparando familiares como filhos e esposas (Líbia e Egito) para sucedê-los e isso foi mais um motivo para os rebeldes organizarem os levantes, o que comprova a queda de legitimidade do tradicionalismo, inclusive, no Oriente Médio. Assim sendo, o tipo de legitimidade mais importante atualmente é a legitimidade racional, ligada a “moral de responsabilidade”. Uma racionalidade referente a fins, pois os indivíduos se mostram capazes de definir objetivos como de avaliar os meios mais adequados para a realização desses objetivos. Nesse sentido, as premissas de legitimidade se encontram instáveis e o valor central se torna a competência do Estado. Grupos sociais estão saindo às ruas para reivindicar seus direitos e apelar por reformas, pois estes não se sentem representados por seus governos e questionam a autoridade destes.
Dessa forma, além da Primavera Árabe, que ainda mantém o seu fogo aceso em muitos países, há os estudantes no Chile questionando o sistema político e econômico vigente no país que tem algumas heranças do governo ditatorial de Pinochet, como o modelo neoliberal. Esse movimento estudantil contagiou outros setores da sociedade chilena insatisfeitos com esse atual modelo e fez com que a população se dividisse em torno das mudanças que deveriam ser realizadas no país, reduzindo drasticamente a popularidade do atual presidente Sebastián Piñera. Na Espanha, como em outros países afetados pela crise econômica, os “indignados”, nome dado aos manifestantes que participam do Movimento 15M, não se sentem representados por nenhum partido tradicional nem favorecido pelas medidas aprovadas pelos políticos. Esse grupo heterogêneo, formado por diversas camadas sociais, rejeita os cortes no estado de bem-estar social e quer atualizar a democracia no país, tornando-a mais participativa. Já os tumultos violentos e criminosos na Inglaterra, por mais que tenham um tom de oportunismo muito forte em seu bojo, podem ser considerados reflexos de uma sociedade em crise por motivos políticos e econômicos.
Essas diferenças demonstram o senso compartilhado de déficit de legitimidade em todo o mundo que tem como causa maior o declínio da eficácia governamental. Ou seja, uma incapacidade progressiva por parte dos governos de prover a seus cidadãos condições e serviços que estes esperam. O meio internacional é interdependente e se as circunstâncias políticas e econômicas, como a crise de legitimidade e a crise econômica, estão colidindo com as relações de autoridade gerando redes de crise, essas redes poderão evoluir, pois essas crises ramificam suas conseqüências, prejudicando as relações de autoridade padronizadas na ordem internacional.
Essa crise de legitimidade não é um fenômeno novo, a legitimidade sempre tem sido objeto de questionamento. As tendências atuais são, portanto, flutuações de um padrão já vigente. Essa conjuntura informa que os líderes estão cada vez mais impelidos para inovarem e responderem adequadamente aos novos critérios de legitimidade. No meio doméstico, os governos são impedidos de realizar novas políticas pela falta de um consenso político e pelas diversas exigências, por vezes ambíguas, da sociedade civil, enquanto externamenteas suas iniciativas são limitadas tanto pelas circunstâncias semelhantes dos governos com os quais devem negociar e pelas demandas de atores transnacionais. O Chile se encontra em um cenário complexo, instável e de descrença nos mecanismos de representação, a impossibilidade atual de um consenso político entre governo, manifestantes e oposição é evidente.  O país vive um verdadeiro impasse, nenhum dos lados quer ceder. Por isso, a mesa de discussão entre o governo e os principais atores do movimento social no Chile aponta profundos desencontros, mesmo que ambas as partes estejam expressando vontade para dialogar e avançar em acordos que ajudem a destravar o conflito. Já a Espanha, além das limitações internas, tem fortes limitações externas. O país não pode responder as demandas de sua população sem negociar com a União Européia e o Fundo Monetário Internacional, pois além da ligação política e econômica, o problema envolve quase todos os países da região. Qualquer resposta às reivindicações do movimento demanda atuação regional
Portanto, por mais distintas que sejam essas agitações populares, suas características compartilhadas colocam o mundo em alerta. As respostas passam principalmente pelos governos locais, mas como há interação entre os níveis micro e macro da estrutura global, não se pode prescindir de uma resposta internacional também. Esse mundo em turbulência, ao contrário do que muitos pensam, não se constitui em um caos, mas sim, em um momento de ajustes, no qual é necessária a participação de diversos setores da sociedade e o repensar de um viés político e econômico a ser seguido.
 Erlene Maria Coelho Avelino é membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília – PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais – LARI

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