O euro, o panzer e o plágio: três tempos de um Siegfried lamentado, por Felipe Kern Moreira

O último carnaval alemão não fugiu à regra das paródias debochadas com os políticos. Pelas ruas da cidade de Colônia – talvez a cidade mais carnavalesca da Alemanha – o ex-ministro da defesa, Karl-Theodor zu Guttenberg, era um dos ‘homenageados’ nos carros alegóricos. Num desses, ostentara-se uma imensa e caricata escultura de Guttenberg abalroando o gabinete da Chanceler com um avião de guerra típico da primeira guerra mundial. Hilário, claro, para os padrões germânicos, que se contentam em assistir ao desfile, ordeiramente, jogando guloseimas e gritando “Heláu”. Nada engracado, contudo, sob a ótica do escândalo político a que faz referência a alegoria carnavalesca.




Karl-Thoeodor zu Guttenberg, da Partido Social Cristão (CSU), teve uma ascenção meteórica no cenário político alemão. Durante o ápice das consequências da crise financeira na Europa, na segunda metade de 2008, o então Vice-Chanceler e Ministro de Assuntos Exteriores Frank Walter Steinmeier (CSU), experiente político que fora inclusive chefe do gabinete de Gehard Schröder, passou, gradualmente, a distanciar-se da chanceler Angela Merkel, do Partido Democrata Cristão (CDU), em termos de propostas para lidar com o abalo financeiro europeu. O mesmo aconteceu com seu colega Ministro das finanças (a Alemanha possui 14 Ministérios dentre os quais um de Finanças e um de Economia e Tecnologia) Peer Steinbrück, do SPD, o Partido Social Democrata, com o qual comungava com o conjunto de medidas que renunciava ajuda financeira aos bancos. Os dois ministros precisavam decidir acerca das respostas do gigante financeiro que é a Alemanha a fim de atenuar o rastro destrutivo das desventuras dos subprime sem melindrar a social democracia germânica.



Questões como a salvatagem das instituições financeiras, aporte aos países europeus vulneráveis e medidas quanto às imensas perdas de investidores alemães clivaram o gabinete da Chanceler. Steinmeier simplesmente manteve a ortodoxia da social democracia alemã: os contribuintes não deveriam arcar com os custos causados pelos aloprados do mercado financeiro do além mar. Mas naqueles tempos sombrios de 2009 as propostas de dividir os custos da crise financeira com os bancos e criar um imposto global para o mercado financeiro soaram ousadas demais. A propósito, a proposta de imposto global foi levada ao encontro do G-20, em outubro de 2009 em Pittsburgh, fato que, ao que parece, não convém ser lembrado.



O momento político era crítico já que, além da crise financeira internacional, Merkel enfrentaria, dentro em breve, as eleições para o Parlamento. Mas, ainda antes destas, Steinmeier renunciou ao cargo de Vice-Chanceler e Ministro e, em setembro de 2009, mudou de partido e concorreu a Primeiro Ministro pelo SPD. No Bundestag, ainda hoje, é líder da oposição. Foi neste ritmo que Guttenberg assume o Ministério da Economia, de forma a tanto refirmar a aliança CDU/CSU como a saber ponderar acerca dos interesses em jogo no panorama financeiro europeu.



As últimas eleições para primeiro-ministro acenaram para mudanças significativas no panorama político partidário alemão. A aliança entre sociais democratas do CDU e do CSU haviam ficado abaladas com a ruptura de Steinmeier. A fim de conseguir reeleger Angela Merkel, o Partido Democrata Cristão (CDU) forma uma coalizão partidária inusitada, com os liberais do Partido Democrático Livre (FDP), numa colaboração que ficaria conhecida como coalizão preta e amarela.



A performance de Guttenberg na pasta da economia foi saudada como heroica. A mídia refletia o sentimento popular: o enaltecimento do passado aristocrático do jovem ministro, seu gênio e firmeza de convicções. Passou a ser um Siegfried pop – forte candidato à sucessão de Frau Merkel – embora a versão desta Cancão dos Nibelungos pósmoderna ainda fosse destoar. Prevalecera a percepção que Guttenberg tinha conseguido que a Alemanha sobrevivesse à crise de primeira ordem na agenda alemã: a financeira. E, então, surge a ideia de confiar-lhe a outra prioridade na lista. E, assim, Guttenberg tornou-se Ministro da Defesa da então recém reeleita Angela Merkel, encarregado de resolver a controvertida presenca das tropas alemãs no Afeganistão além de ter que lidar com um ponto sobre o qual FDP e CDU possuem distintas opiniões: a obrigatoriedade do serviço militar. CSU e CDU eram a favor de manter a obrigatoriedade e FDP lutava pela rápida mudança para um serviço voluntário. Por sinal, a pasta dos Assuntos Exteriores foi assumida pelo vice-Chanceler, Guido Westerwelle, líder dos novos aliados liberais (FDP).



No que diz respeito ao Afeganistão, os desafios a serem enfrentados pela Alemanha em termos de política de defesa são inúmeros. O compromisso alemão com Israel – e isto significa seguranca e viabilidade deste Estado – persevera como objetivo tópico na agenda de política externa alemã. E, para alguns analistas, a presença das tropas germânicas no Afeganistão possui relação com este compromisso político-histórico. Por outro lado, parcelas significativas de pacifistas alemães fazem campanha initerrupta para a saída dos soldados do conflito que, em tese, não diz respeito aos alemães. Estas manifestações podem ser vistas nas ruas, nas Universidades, e atingem em cheio facções políticas que se aproveitam de um momento de esvaziamento ideológico do cenário partidário alemão.



No país que é berçário de ideologias e partidarismos militantes foi possível a aliança entre sociais-democratas e liberais. A coalisão preto amarela aponta para rumos incertos da política externa alemã. Quer dizer, melhor seria avaliar que não aponta para lugar algum. Mas mais imprevisível ainda foi o que ocorreu com Guttenberg. O popular Ministro da Defesa foi denunciado por plágio, referente à sua tese de doutoramento defendida na Universidade de Bayreuth, a qual havia sido alçada ao elogio máximo da academia alemã: summa cum laude. O Ministro justificou-se inicialmente alegando um descuido advindo do excesso de trabalho já que a tese foi escrita nos sete anos ao longo dos quais atuava como deputado federal. Verdade é que, após a denúncia, adentrou num obsequioso silêncio sobre o assunto.



A Universidade de Bayreuth reconheceu o plágio e Guttenberg perdeu o título de doutor. No país reconhecido pela excelência de suas Universidades as investigações continuam; desta feita para aferir se o plágio foi intencional. E o Siegfried pop renunciou, num ambiente lúgubre de hesitação por parte do gabinete da Chanceler. Curiosamente, o ex-ministro parece não ter sua popularidade abalada. Nada que seja estranho no país que assiste aos atos públicos de nacional socialistas, de todas as idades, saudosistas do Fürher que lançou o país no abismo. A cerimônia de despedida foi comovente, Guttenberg detinha apoio de civis e militares e, impávido e controlado, despediu-se do governo ao som de sua música favorita, “Smoke on the Water” do Deep Purple, tocada pela banda marcial. Mais apropriado impossível: águas turbulentas essas, por sinal.



Guttenberg foi sucedido por Thomas de Maizière, do CDU, que, com a bola na área, terminou de fazer uma das reformas pretendidas pelo antecessor: o serviço militar deixou de ser obrigatório. Mas ainda persistem os principais desafios da política exterior: Afeganistão, União Europeia, a crise do Euro e energia, este último um Jano com uma face de gás russo e pipeline ucraniano e, outra, de continuidade de usinas termonucleares, cuja a gradual extirpação era uma bandeira social democrata que remonta ao apoio dos Verdes. E, acrescente-se a tudo isso, a abstenção alemã relativa à Resolução 1973 baseada na atual postura do status quo de não enviar tropas à Lybia, o que só agravaria as pressões quanto ao Afeganistão. Há quem entenda que era de se esperar mais de um membro da OTAN e candidato a um assento permanente no Conselho de Segurança – não obstante as abstenções de Brasil e Índia – pelo menos mais do que ajuda humanitária e bases para as tropas americanas. Por outro lado, os motivos que levaram à abstenção alemã também são de outra ordem dentre as quais se destaca a suposta falta de clareza das medidas de intervenção humanitária e as responsabilidades decorrentes deste apoio, na OTAN, por exemplo.



Os desafios internos pelos quais a política alemã passa podem ser reunidos sob a alcunha de esvaziamento ideológico que é a causa eficiente para dificuldade de coesão no que diz respeito a certas políticas públicas. A este respeito, os principais temas da agenda internacional das últimas semanas permitem a percepção dessas fragilidades: o vazamento nuclear em Fukushima e a intervenção na Líbia. Quanto à energia nuclear, a proposta de erradicação das usinas transformou-se em moratória e parte dos reatores antigos ainda não foram desativados. Por outro lado, os verdes ganharam as eleições parlamentares no estado de Baden-Württenberg, potência tecnológico-industrial, o que mostra uma tendência política interna no sentido inverso. Apesar das propostas dos verdes para as fábricas automotivas de Hannover não ir muito além dos carros elétricos e de uma retórica ambientalista evasiva. Em relação à Líbia, Westervelle parece macular a altivez alemã na medida em que força a imagem pacifista da Alemanha tentando contrabalançá-la com a participação alemã no Afeganistão que em virtude de compromissos de campanha já estaria com os dias contados. O difícil é antecipar a conjuntura dos rumos políticos alemães neste período de acomodação de forças e baixa de um provável novo Chanceler.



O título deste ensaio faz referência ao memorável “A Metralhadora, o Tanque e a Ideia, do sociólogo francês Raymond Aron, escrito em meio a um conturbado 1961. As preocupações de Aron diziam respeito, principalmente, às relações civis militares e à questão nuclear. O cenário dos sessenta se foi e com ele parte da necessidade do recurso a este Aron. Parte, sublinhe-se. O irretocável impõe-se, ainda hoje: no passado, partidos e ideias, liberais e conservadores, podiam combater-se e reconciliar-se, confundir-se ou distinguir-se, raramente questionando ou colocando em perigo o tecido básico da sociedade. O mesmo não acontece hoje

Felipe Kern moreira é professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima

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