A sociedade de consumo pode gerar sustentabilidade e atores sociais


PORTILHO, Fátima. Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania. São Paulo: Cortez, 2005, 255p.




Entre as preocupações para consolidar uma agenda ambiental na conjuntura atual encontramos o desafio posto de compreender as circunstâncias nas quais será possível conjugar consumo, sustentabilidade ambiental e os respectivos atores para dar conta do propósito. A perspectiva de um modelo de sociedade sustentável conduz à apreciação do relacionamento entre produção e consumo, entre cidadania e práticas sociais. Neste ínterim engendra-se um múltiplo debate na sociologia ambiental, em cujo percurso amadurece as controvérsias sobre as alternativas para os conflitos ambientais em face da degradação e da exaustão de recursos naturais. Estratégias, mediações e atores sociais são fundamentais especialmente para a proposição de um desenvolvimento sustentável. Nesta perspectiva posiciona-se o livro de Fátima Portilho sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania, que se apresenta como uma vasta revisão da literatura internacional oriunda de uma tese de doutoramento. Com certeza passa a ser uma referência para ambientalistas e para o campo de análise da sociedade de consumo pela largueza e pertinácia de sua abordagem.


Muitas hipóteses foram lançadas, entretanto o sucesso de consumidores organizado conseguiu atingir somente a institucionalização de demandas. A contribuição da autora tenderá a adquirir um espaço entre os autores contemporâneos que fizeram emergir a temática ambiental a partir do embate de idéias, de práticas sociais e de desvendar soluções para a crise ambiental. Praticamente todos os autores e enfoques a que Portilho se referencia se circunscrevem à perspectiva culturalista, por compreenderem que um projeto de novas idéias e que o consumidor como ator social pode mudar o comportamento individual e a sociedade devastadora por meio do reordenamento do consumo. No entanto, a utilização do termo sociedade de consumo integra o seu discurso sem uma necessária convergência ou divergência com o termo cultura do consumo também largamente utilizado na sociologia ambiental.


As principais questões que suscitam a análise a partir do consumo podem ser assim sintetizadas: a) as ciências sociais possuem um posicionamento chave para a interpretação dos riscos visíveis e invisíveis do consumo ampliado; b) o crescimento perceptível e notório do consumo relativiza os posicionamentos de classe social, pois os efeitos dos riscos ambientais tendem a atingir quase indistintamente a toda população; c) o potencial político a partir do consumo está condicionado à capacidade de desenvolver novas políticas híbridas; d) a análise lida com a consolidação da relevância das mediações e o declínio na legitimidade das instituições; e) a sociedade no momento presente não se caracteriza mais de forma predominante pelo trabalho/produção, pelas classes sociais, mas antes pelo consumo que altera a qualidade de vida e pelos riscos a que todos estão submetidos cotidianamente; f) a emergência da sociedade de consumo, alicerçada na proeminência da ciência e da tecnologia, na abundância de bens implica no fim das tradições, fim da natureza, relativização das posições de classe.

No contexto de uma extensa introdução ao assunto, a autora apresenta inicialmente a proposta da obra e procede a uma parcial revisão da literatura sobre a sociedade de consumo. Entre outros aspectos constrói uma justificativa a relevância e a proeminência da temática abordada, apontando que o tema do consumo no cenário ambientalista vem aproximando-se da centralidade na agenda das ciências sociais. Em outros termos, as abordagens em torno do consumo estariam se encaminhando para alçar a hegemonia no debate dos problemas ambientais, na medida em que estaria em construção um novo discurso que redefine a crise ambiental como um problema predominantemente originado na esfera do consumo.

Os autores referenciados pelas pesquisas sobre questões ambientais chegaram a um consenso de que o consumo e o impacto sobre os recursos naturais estão correlacionados com a questão social, a cidadania e a continuidade da existência das desigualdades sociais. Entretanto, o que os diferencia é a ênfase dada ao significado do consumo a partir de pontos de partida, do lugar social do discurso e das soluções que apresentam como alternativa à crise ambiental. Assim parte do debate referenciado e expresso por Portilho sobre a relação entre meio ambiente e consumo assenta-se na interrogação se o consumidor é um novo ator social, bem como o nexo entre a esfera privada do consumidor e a esfera pública do cidadão.

A autora põe em discussão diversos limites implacáveis e condições de possibilidade. Sem deslizar para a crítica ao consumo supérfluo, alerta para os limites do consumo, a delimitação dos recursos naturais e a busca de uma racionalidade ambiental. Neste contexto define a sua hipótese de trabalho: “as propostas de consumo sustentável restritas à esfera individual são limitadas, limitantes e desagregadoras. As ações de caráter coletivo podem ampliar as possibilidades de ambientalização e politização das relações de consumo, contribuindo para a construção da sustentabilidade e para a participação na esfera pública” (p. 36). Em outros termos, está à procura do lócus e dos atores sociais que congreguem as condições de possibilidade para assimilar a agenda de mudanças que a urgência da agenda ambiental requer. Se de um lado, aponta para as novas condições e possibilidades da ação política na sociedade contemporânea, onde velhas instituições, mediações e mecanismos estão desgastados, de outro o texto versa com parcimônia a abordagem do nexo entre a esfera estatal com o ordenamento jurídico e a sociedade civil com seus múltiplos atores.

No segundo capitulo a autora constrói o percurso do deslocamento discursivo, da produção para o consumo, a partir da emergência internacional do discurso político sobre consumo e meio ambiente. A justificativa para o deslocamento de ênfase da esfera da produção para o consumo se concentraria no fato de que a regulação em grande medida está efetivada na produção e no fato de que a novidade em questões ambientais localiza-se na esfera do consumo, onde também se concentra o espaço de participação do cidadão. A autora intercala de forma congruente os resultados das conferências internacionais e a literatura acadêmica. Todavia, a autora restringe-se quase por completo à literatura e ao contexto internacional do pensamento ambientalista o que por sua vez pode gerar ocasionais lacunas, bem como o risco de idealizar o que está distante, o global, enquanto a realidade cruel com facetas locais pode apresentar outros meandros.


O texto dá conta da ampliação do enfoque sobre o consumo nas abordagens das ciências sociais e dos espaços institucionais onde se tratam das questões relativas aos efeitos ambientais da ciência e da tecnologia, das questões que a produção e o consumo proporcionam. Sob esta ótica a autora realiza uma retrospectiva teórica relacionada à sociedade de consumo, a fim de melhor compreender a relação entre consumo, cultura, cidadania e meio ambiente. Para isto destaca alguns elementos da compreensão e da justificação para se firmar a denominação de sociedade de consumo, bem como a emergência e a trajetória da propensão ao consumo. A trajetória da teoria das necessidades de A. Heller, que a autora não aprecia em sua abordagem, poderia ser muito útil para a explicação da emergência da propensão ao consumo. Ainda mais, antes de eleger um novo pólo de irradiação ou endossar de que a feição do consumo incita a produção, a partir da perspectiva dialética, é possível compreender que em cada circunstância a conjugação de fatores permite assinalar a influência mútua entre produção e consumo, ou a interdependência ou da preponderância.

O campo da natureza só faz sentido se passar pela esfera de compreensão humana e das relações sociais. Isto é endossado por diferentes vertentes, tanto por culturalistas, quanto por uma vertente dialética materialista. Neste sentido, ainda no terceiro capítulo a autora enfoca em síntese três diferentes maneiras de abordar a sociedade de consumo, é sobre estas teorias e suas perspectivas que convém firmar alguns comentários. A primeira vertente apresenta a perspectiva do consumo dependente à produção industrial, inserido na sociedade capitalista e subordinado à luta de classes, à predominância da mercadoria e do lucro. Nesta ótica o consumidor é visto acima de tudo como vítima, explorado, manipulado e passivo. A segunda, como reverso da anterior, focaliza a sociedade de consumo como a ratificação da racionalidade e a consumação do utilitarismo. Ou seja, pela teoria de escolha autônoma do individuo, consumir é um ato racional por excelência, sendo o consumidor visto pela ótica do racional, soberano, direito de escolha e poder. O terceiro enfoque caracteriza-se como pós-moderno, apresenta um olhar múltiplo da sociedade de consumo, porém existe um consenso quanto à perspectiva material e simbólica do consumo. A aquisição diferenciada de bens possui a virtude de fortalecer laços e relacionamentos sociais, sendo o consumidor apreciado pela ótica do poder, decisão, identidade, escolha, subjetividade.



Um reparo às escolhas e ao enfoque da abordagem apresentada de modo especial neste capítulo, mas cuja perspectiva a acompanha por toda obra. Por mais que se concorde quanto às carências de Marx e da escola de Frankfurt para compreender ao que hoje se caracteriza como sociedade de consumo, há de se convir que outros autores sob influência da dialética e análise marxista, também menos ortodoxos, dedicaram-se ao estudo do consumo na vertente dos eco-marxistas e dos eco-socialistas. Esta última corrente esteve visivelmente presente nas edições do Fórum Social Mundial, realizadas em Porto Alegre. De um lado, a autora desconsidera, ou não consegue perceber, a parcela de contribuição do marxismo contemporâneo para a compreensão da sociedade de consumo, na medida em que autores de reconhecimento internacional, tais como Burkett, Foladori, Foster, Jameson, Leff, Lefevbre, Redclif entre outros não estão mencionados ou são referencias secundárias.

De outro ainda, embora considere as múltiplas abordagens da sociedade de consumo, não estabelece uma nítida distinção entre as vertentes que discordam e daquelas que endossam que as questões ambientais engendradas pela sociedade de consumo podem também ser encaminhadas pela ciência e pelo mercado. E deste ponto de vista, o grande ausente do livro de Portilho é o mercado, pois embora a autora seja explícita na crítica das alternativas fáceis ou imediatas da sustentabilidade ambiental, não fica claro o suficiente como o consumo sustentável vai se relacionar com o mercado e seus poderosos mecanismos de marketing. Sem dúvida, outro ausente é o Estado como regulador ou como espaço de negociação dos conflitos ambientais, por mais que se concorde com a crise institucional.


No quarto capítulo a autora aborda a preocupação com o consumo no movimento ambientalista pós-rio92, de um lado destacando dilemas, promessas, abrangência, armadilhas e ambigüidades das propostas de consumo verde que de alguma forma vem sendo absorvidas pelo mercado, e, de outro, as possibilidades das estratégias e os desafios conceituais e políticos do consumo sustentável. Sob este último aspecto, na qualidade de abrangência e da congruência do olhar, três dimensões se integram produção justa, distribuição solidária e consumo sustentável. A contar pelo título, poderia obter um lugar de destaque na exposição dos argumentos o importante documento “agenda 21”, ainda mais que o mesmo possui cunho internacional e trata no capitulo quarto da mudança nos padrões de consumo e cinco capítulos distintos versam sobre desenvolvimento sustentável. Todavia, o texto fica devendo ao leitor a abordagem dos dilemas inusitados e dos desafios políticos extraordinários para que a formulação de proposições no campo ambiental transformem-se em resoluções práticas no seio da sociedade civil.


A conferência Rio 92 combina o espaço na mídia para a divulgação de problemas, a multiplicação de análises científicas sobre a interação sociedade e meio ambiente e o nível sem precedentes do interesse societal por questões ambientais. O movimento ambientalista prestou-se como um ator relevante para a internalização das questões ambientais, especialmente porque seu apelo contagiou setores intelectuais da academia e porque propugna a formulação de políticas públicas. O movimento em prol do consumo verde teria fracasso em suas pretensões, segundo a autora, pela simples razão de que se centra na questão ética individual, enquanto predomina o utilitarismo.

No quinto capitulo, Portilho pretende dar conta da formulação inicial do seu problema de investigação: as propostas de consumo sustentável no embate entre a esfera individual e as ações de caráter coletivo visando a politização e a ambientalização do consumo, bem como conectando sustentabilidade e cidadania. No lugar de compreender a esfera do consumo como pela lógica da submissão e acomodação ao sistema, a autora quer desvendar subsídios para traçar as feições do consumidor como um ator social ou um cidadão. Ao contrário da afirmativa de Canclini “cidadão do século XVIII e consumidor do século XXI” soma esforços na reflexão para demonstrar que do papel de consumidor será viável a emergência do cidadão na sociedade de consumo. Neste sentido, contrapõe duas lógicas, a da despolitização pela dominância do mercado sobre a esfera pública, portanto, de cidadão a consumidor, e a lógica da politização onde a partir do consumo abrem-se as condições para a emergência de um ator social. Neste percurso a autora mantém-se sóbria na análise das conseqüências políticas do deslocamento da questão ambiental para o campo do consumo, uma vez que se dedica intensamente aos limites e possibilidades, injunções e condicionamentos históricos, desafios e ambigüidades da politização do consumo.

O movimento ambientalista de contestação ao consumo ou de boicote, sob um ponto de vista da crítica e de longo prazo, não é um movimento histórico, uma vez que na sua multiplicidade não cogita um projeto arrojado de sociedade alternativa ou substantivamente distinta do presente. Ao longo dos anos a consciência ambientalista levou as exigências ambientais a superarem a perspectiva monotemática, tendendo a sair do setorismo e sectarismo. Na sua diversidade contempla temas que possuem uma centralidade entre os problemas da modernidade, em que o consumo aparece entre os riscos das questões ambientais. Ao longo do desenvolvimento da perspectiva ambiental modificou-se a visão sobre o desenvolvimento da tecnologia e de seus efeitos ambientais, bem como existem diferentes agentes sociais que endossam a sustentabilidade.

Se de um lado, a internalização na estrutura do Estado retira relevância e radicalidade das questões ambientais, de outro, a internalização de longe não se apresenta homogênea no aparelho de Estado em suas diferentes instâncias. Sem sombra de dúvida ocorreu uma institucionalização da questão ambiental, mas de outro, como ampliar uma sociedade ambiental sem penetrar nos meandros da institucionalidade, da burocracia.



Uma ambigüidade permanece no que diz respeito ao ponto de partida para a compreensão quando se trata da radicalidade: o discurso e a prática radical consiste numa oposição ao consumo intenso e ampliado, ou os efeitos soam maiores com a internalização da perspectiva ambiental em todos os âmbitos da sociedade? Onde se encaminham e resolvem os problemas ambientais: no mundo da vida e suas relações cotidianas complexas ou na construção de modelos sociais destacando a utopia da mudança social?



Veja-se a dupla dimensão: de um lado, o significado da incorporação pelo público das reivindicações ambientais em situações de relações sociais complexas, de outro, o quanto o conhecimento de problemas ambientais produz os respectivos comportamentos no público, mesmo implicando em restrições às comodidades da sociedade de consumo. Este último aspecto interroga sobre a disponibilidade do consumidor para ´pagar o preço´ a fim de construir uma sociedade sustentável.



Ao contrário da retração em face das questões ambientais nas ciências sociais, a autora defende uma diversificação e revitalização do campo da sociologia ambiental a partir da ênfase na sociedade de consumo e o papel dos novos atores sociais. A análise se aprofunda na crítica à sociedade de consumo, uma vez que a deterioração do meio ambiente causa também respeitáveis impactos sobre aspiração à qualidade de vida. Verifica-se uma crescente compreensão no que diz respeito do nexo entre abundância de consumo e uma racionalidade da qualidade ambiental, bem como do nexo entre as dimensões materiais e simbólicas do consumo.



Resta ainda saber como o gérmen da politização do consumo vai desenvolver-se na direção de produzir alternativas efetivas à degradação e devastação dos recursos naturais. Resta saber como na prática social esse gérmen de cidadania ambiental vai se reapropriar da vida da democracia direta. Não por último, como não abandonar a perspectiva dialética, compreendendo a cada circunstância a conjugação de fatores que permitem desvendar a influência mútua entre produção e consumo, entre consumo e cidadania, entre a dimensão individual e social, entre forças e conflitos sociais, entre sustentabilidade econômica e sustentabilidade sócio-ambiental.



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