Federalismo Cooperativo e Irresponsabilidade Ambiental

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Parece-me ser consenso que a regulamentação do artigo 23 da nossa Constituição é bem-vinda, pois deixaria mais claras as atribuições da União, dos Estados e dos Municípios na formulação e gestão da política ambiental, além de dirimir conflitos de competência, que muitas vezes acaba impondo prejuízos à aplicação da legislação. A regulamentação também seria uma forma de pôr em prática uma boa inovação da


Constituição de 1988 – o “federalismo cooperativo”.

Contudo, considerar fundamental a regulamentação do artigo 23 da Constituição Federal não autoriza que se faça tabula rasa da nossa legislação ambiental, como pretende o texto do Projeto de Lei Complementar nº 01/2010, aprovado na Câmara dos Deputados e que seMencontra na iminência de ser votado no Senado.

Deve-se questionar porque o Governo Federal teve postura tão passiva frente a alterações tão graves introduzidas na Câmara dos Deputados, que tiveram o amplo apoio da base parlamentar do Governo e foram vivamente comemoradas pela bancada ruralista. É importante lembrar que o projeto do Executivo, enviado em 2007 ao Congresso, foi fruto dos esforços de Grupo de Trabalho formado por representantes do Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, ANA, da Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente e da Associação Nacional dos Municípios e Meio Ambiente.

Para além de fixar competências entre os entes da federação, o Projeto de Lei Complementar nº 01/2010 altera dois pontos essenciais na legislação ambiental: o licenciamento ambiental e o poder de fiscalização do IBAMA.

O projeto de lei dispensa o licenciamento de construção de vilas militares, centros de treinamento e similares. Não faz sentido que esses empreendimentos não tenham a devida licença, uma vez que o critério relevante deve ser o impacto ambiental das obras e não quem está realizando o empreendimento.

Na tentativa de esvaziar as atribuições que o Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente) exerce com competência e transparência desde 1981, o projeto cria uma Comissão Tripartite Nacional, formada por representantes dos governos federal, estaduais e distrital e dos municípios, para, entre outras atribuições, propor ao presidente da República a edição de decreto que estabelecerá quais empreendimentos causam grande impacto ambiental. O Conama é formado majoritariamente por representantes das três esferas de governo, mas também por representantes dos setores econômicos (indústria, agricultura, pecuária e comércio) e das organizações não governamentais. Perdemos em qualidade ao deixar de ouvir esses setores e perde principalmente a democracia. Para compensar, seria ouvido apenas um membro do conselho, o que não faz nenhum sentido, dado o caráter colegiado do órgão.

A alteração mais contundente e prejudicial à política ambiental do País está no artigo 17 do projeto. Esse artigo estabelece que apenas o órgão licenciador poderá fiscalizar as obras e atividades que causam danos ao meio ambiente. Se houver aprovação dessa proposta no Senado, fiscais do órgão federal não poderão mais aplicar penalidades a desmatadores, por exemplo.

Frente ao absurdo, o projeto tenta remediar ao considerar a possibilidade de haver uma ação imediata para evitar ou mandar parar a atividade, frente a iminência ou ocorrência de degradação ambiental. Mas não poderá dar consequência a essa ação imediata, sendo obrigado a comunicar o órgão licenciador para que esse adote as providências decorrentes da ação. Com isso, será necessária a duplicação de esforços em área em que a capacidade de intervenção já é limitada. O mesmo pode ser dito em relação a fiscais municipais frente a situações de despejo ilegal de efluentes tóxicos feito por uma indústria cuja autorização tenha sido dada pelo governo estadual, por exemplo. O resultado é uma perda irreparável à capacidade do Estado fazer cumprir a legislação ambiental.


Como se observa, o projeto sofreu mudanças substanciais durante a tramitação na Câmara, perdendo assim o foco: deixou de estimular a cooperação para se centrar na divisão de funções. Inseriu-se de última hora artifícios com o objetivo de tirar os poderes de fiscalização do Ibama e enfraquecer as decisões do Conama. Uma proposta que visava criar instrumentos e formas de cooperação entre a União, os Estados e os municípios pode, na verdade, provocar o oposto: divisão e enfraquecimento das instituições públicas. Com isso, em vez de o Legislativo ajudar a enfrentar os problemas extremamente graves que afetam a saúde, a economia e o meio ambiente, estará anulando o que já se conquistou. E o pior, com a complacência do Poder Executivo.


O projeto como o governo quer votar será mais uma medida que revela a natureza contraditória de suas ações na política ambiental. Se de um lado assumiu no ano passado um compromisso voluntário de redução de emissão de gases que provocam efeito estufa, de outro sinaliza que quer aprovar um projeto que vai contra esse objetivo. Esperamos que a sociedade e o Senado reajam contra isso.


Marina Silva, 52, é senadora do Acre pelo PV, foi candidata do partido à Presidência da República nestas eleições e ministra do Meio Ambiente do governo Lula (2003-2008).



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