O grito árabe pela democracia


A possibilidade de alguém sair às ruas do Cairo para protestar contra o presidente Hosni Mubarak em 1998, no ano em que o jornalista americano de origem egípcia Abdalla Hassan se mudou para a cidade, era, nas palavras dele, “simplesmente impensável”. “No máximo culpava-se o primeiro-ministro, jamais o presidente”, disse Hassan a ÉPOCA, na semana passada, enquanto os protestos se espalhavam pelas ruas da capital egípcia. Seu depoimento dá a dimensão do medo imposto pelo ditador há 30 anos no poder – e quão espetaculares e inesperados foram os eventos que tiveram lugar na semana passada no Cairo e em cidades como Suez e Alexandria. Multidões sublevadas saíram pelas ruas clamando por melhores condições de vida, emprego e, sobretudo, pelo fim do regime de Mubarak. Para deter as manifestações, o ditador derrubou a internet, cortou a telefonia celular e ocupou estações de rádio e TV. No início da noite da sexta-feira, decretou toque de recolher. Não adiantou. Os protestos continuaram. A semana terminou sem que estivesse claro o futuro político do maior aliado dos Estados Unidos no mundo árabe. Se Mubarak cair, o que viria em seu lugar – uma democracia moderna ou outra teocracia islâmica como a do Irã? A resposta a essa pergunta é crucial para toda a região.

A revolta popular do Egito é a maior de uma corrente de revoltas que começou na Tunísia. Lá, em 17 de dezembro, o vendedor de verduras Mohamed Bouazizi, de 26 anos, da cidade de Sidi Bouzid, se indignou porque sua mercadoria foi apreendida pela polícia, de modo flagrantemente abusivo. Humilhado, tentou reclamar na prefeitura, que não o atendeu. Bouazizi, então, ateou fogo a si mesmo e morreu em frente ao prédio. Sua imolação foi a fagulha que incendiou os tunisianos contra o presidente Zine El Abidine Ben Ali. Há 23 anos no poder, Ben Ali não resistiu à pressão popular e renunciou no último dia 14, algo inédito no mundo árabe. Depois da Tunísia, o vento de revolta se espalhou. Chegou a Iêmen, Jordânia e Argélia – além do Egito –, sacudidos por manifestações. Em quase todos esses países (a exceção é a Jordânia, uma monarquia), autocratas se perpetuam no poder por meio de eleições fraudulentas, amparados na repressão policial e na corrupção. Em 2010, apenas dois países árabes – Líbano e Iraque – não foram considerados regimes autoritários, segundo o índice de democracia da Unidade de Inteligência da revista Economist. Foi esse o cenário que começou a balançar na semana passada. Estará aberto o caminho para reformas democráticas – ou para outra forma de opressão, a religiosa?
A cultura árabe ou a religião muçulmana não são impedimentos à democracia. A Turquia é o melhor exemplo disso. “É um país onde há movimentos islâmicos fortes e que ao mesmo tempo funciona como uma democracia com muito sucesso”, diz Marina Ottaway, diretora do programa de Oriente Médio do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, de Washington. Para Marina, os regimes hoje existentes são o principal obstáculo para o surgimento da democracia na região. “A dúvida é se as sociedades árabes conseguirão derrubar esses regimes”, afirma.

Fotos: Fethi Belaid/AFP, Khaled Abdullah/REUTERS, AFP e Citizenside.com/AFP

Nem todos têm a visão de Marina. No polêmico livro The strong horse – Power, politics, and the clash of arab civilizations (Um cavalo forte – Poder, política e o choque das civilizações árabes), o jornalista americano Lee Smith diz que o mundo árabe sofre de violência política endêmica. Para ele, repressão e terror são aspectos da cultura política da região, que não oferece nenhum mecanismo de partilha de poder, exceto a herança, o golpe ou a conquista. Smith diz não acreditar que os protestos atuais tenham surgido em nome da democracia. “Em muitos momentos na história da humanidade – como nas revoluções francesa (1789), russa (1917) ou iraniana (1979) –, a população não tomou as ruas para lutar por democracia”, afirma. “Tendemos a acreditar que são protestos por isso, mas há outras razões para uma manifestação acontecer. A luta é por melhores condições de vida, oportunidades de trabalho, moradia, mais liberdade de expressão, mobilidade política – e não necessariamente por democracia.” Os comentaristas são unânimes em apontar na pobreza e na marginalização econômica um dos motores do ressentimento por trás dos protestos no mundo árabe.

Além de regimes autoritários, os países árabes compartilham problemas econômicos como inflação e desemprego. No Fórum Econômico de Davos, na Suíça, o economista Nouriel Roubini, que previu a crise financeira de 2009, resumiu assim a situação dos países do Oriente Médio e do norte da África: “Nos mercados emergentes, a crise leva a inflação, redução do poder de compra, levantes, protestos e instabilidade política”.

Independentemente da motivação, os protestos que começaram na terça-feira constituem uma ameaça real à permanência no poder de Mubarak. Aos 82 anos, ele já preparava o filho Gamal para a sucessão, como se o Egito fosse uma dinastia. Na sexta-feira – dia que ficou conhecido como a “sexta da fúria e da liberdade” –, a rede de TV Al Jazeera informou que manifestantes conseguiram dominar o centro da cidade de Suez e várias áreas de Alexandria, com o apoio de policiais. Em Suez, os manifestantes libertaram todos os presos de uma delegacia, depredaram carros blindados e roubaram lançadores de bombas de gás lacrimogêneo. No Cairo, um dos prédios do Partido Nacional Democrático (PND), de Mubarak, foi incendiado sem que os bombeiros surgissem para debelar as chamas. Estima-se que pelo menos dez pessoas já teriam morrido desde o início dos protestos e que haveria mais de 1.000 presos, mas esses são números ainda incertos numa história que ainda estava em andamento no fechamento desta edição.

Um dos desaparecidos, o ativista Ahmed Salah, já fora preso e torturado por se opor ao regime. Desde que saiu para participar da primeira manifestação, no dia 25, Salah não foi visto nem atende o celular. Em entrevista na semana anterior, ele disse ter certeza de que, se fosse preso, não sairia vivo. Um repórter do jornal britânico The Guardian foi detido e agredido a socos, chutes e pauladas. Outros órgãos da imprensa também afirmaram que seus correspondentes foram presos. Na noite da sexta-feira, a polícia invadiu o escritório da Al Jazeera, a cadeia de televisão em língua árabe que tem funcionado como uma espécie de difusora dos protestos.

No fim da tarde, foi divulgada a prisão domiciliar de Mohamed El-Baradei, o ex-presidente da Agência Internacional de Energia Atômica da ONU e ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 2005. Defensor da democracia no país, ele vive em Viena e voltou ao Egito na quinta-feira para tentar liderar a oposição. Participou das orações da sexta-feira numa mesquita de Gizé, cidade das pirâmides. Ao final da oração – momento para o qual estava marcado o início dos protestos –, a polícia impediu que ele deixasse a mesquita e lançou bombas de gás lacrimogêneo em todo o quarteirão. A prisão de El-Baradei assinala a radicalização da repressão do regime.

O Egito nunca viu nada assim. O último grande protesto no país ocorreu em 1977, quando o povo foi às ruas exigir do então presidente, Anuar el-Sadat, a volta de subsídio a alimentos. O grau de contestação política era menor. Além da Al Jazeera, atribuiu-se à internet e às redes sociais, como Facebook e Twitter, um papel fundamental na organização dos protestos. As manifestações têm sido lideradas pela população jovem. No Egito, dois terços dos 80 milhões de habitantes têm menos de 30 anos (leia o quadro). Nunca conheceram outro governante que não Mubarak.

O partido do governo atribuiu as manifestações à Irmandade Muçulmana, uma organização político-religiosa com um histórico de violência, que opera há anos na ilegalidade e cujas ideias foram o berço de organizações extremistas como a Al-Qaeda. Na madrugada da sexta-feira, oito líderes da Irmandade Muçulmana foram detidos depois que o grupo anunciou apoio às manifestações populares. A despeito da acusação do governo, há indícios de que as manifestações da semana passada foram resultado da ação de grupos distintos. Os protestos do dia 25, por exemplo, foram convocados no Facebook pela página Somos Tudo o Que Khaled Disse, criada em memória do jovem Khaled Said, espancado até morrer por policiais egípcios depois de preso em Alexandria, em junho do ano passado. Outro grupo que estaria por trás do levante é o Movimento Jovem 6 de Abril, nascido no Facebook em 2008. Ele começou reunindo gente em apoio a uma greve de trabalhadores têxteis na cidade fabril de Mahalla. Quem quisesse aderir era convidado a vestir-se de preto e a não ir trabalhar ou estudar. Mobilizou tanta gente que passou a defender outras causas – e entrou na lista de perseguidos de Mubarak.
“As redes sociais permitiram que as manifestações fossem organizadas muito rapidamente, antes que a polícia pudesse se preparar”, diz o jornalista Abdalla Hassan. No dia 26, ele foi a uma cafeteria perto da Praça Tahrir, no centro do Cairo, e viu um protesto nascer sem alarde. De repente, eram centenas gritando, pedindo a queda do regime. Os policiais também apareceram rápido, cercaram as pessoas e isolaram a praça. Ninguém mais poderia descer na estação do metrô da Praça Tahrir. Os trens simplesmente seguiam direto: a manifestação não podia crescer.

Na sexta-feira, os manifestantes aproveitaram o dia de orações para mobilizar ainda mais gente. Centenas de milhares saíram das mesquitas entoando gritos de protesto e paz. As autoridades barraram o acesso à internet e ao serviço de mensagens de texto por celular desde a noite de quinta-feira. Antes, circulava pela rede um panfleto com instruções para os manifestantes. Entre elas, repassar o conteúdo por e-mail, telefone ou impresso, não por mídia social ou sites, vigiados pelo governo. A cartilha reunia informações práticas: o que levar – uma rosa, um escudo e um spray de pimenta –, como se proteger da polícia e para onde ir. E também fazia exigências: queda do governo Mubarak e de seus ministros; liberdade; justiça; um novo governo composto de representantes de fora do Exército que se importem com o povo egípcio; e uma boa gestão dos recursos do país. Os manifestantes têm preocupações concretas. “Olhe o preço do quilo da carne, veja quanto custa o quilo do tomate!”, disse um deles ao jornalista Abdalla Hassan.

Até a tarde da sexta-feira, Mubarak não acenara com nenhuma mudança, contrariando a orientação dos Estados Unidos, seu principal aliado. No primeiro dia de protestos, a secretária de Estado Hillary Clinton afirmou: “Nossa avaliação é que o governo egípcio é estável e está buscando maneiras de atender às necessidades e aos interesses legítimos do povo egípcio”. Na sexta-feira, o tom mudou. “Insistimos que as autoridades egípcias não devem impedir protestos pacíficos nem bloquear a comunicação, incluindo mídias sociais”, dizia o segundo comunicado. Nele, Hillary disse que os protestos “sublinham a existência de mágoas profundas na sociedade egípcia” e que o governo precisava entender que “a violência não vai fazer essas mágoas desaparecer”.

Mubarak não dera sinal de que atenderia a qualquer uma das sugestões. A Casa Branca anunciou na tarde da sexta-feira que o presidente Barack Obama estudava reduzir a ajuda anual de US$ 1,5 bilhão que os EUA enviam ao Egito, a segunda maior a um Estado estrangeiro, atrás apenas de Israel. “Vamos rever nossa postura em relação à assistência ao Egito com base nos eventos dos próximos dias”, disse Robert Gibbs, o porta-voz da Casa Branca.

Aliado antigo dos americanos, Mubarak tem um papel fundamental na manutenção da paz com Israel e como um obstáculo à ascensão de grupos radicais no próprio Egito. Além de sua população de 80 milhões de habitantes, o país é importante pela localização geográfica estratégica entre o norte da África e o Oriente Médio. O Canal de Suez, ao norte do Egito, é fundamental para o transporte do petróleo do Golfo Pérsico para o Ocidente. De acordo com Ben Whittaker, especialista de Oriente Médio do jornal inglês The Guardian, o tom de Hillary sugeria uma saída negociada de Mubarak. O envolvimento dos EUA nesse processo, ainda com a rebelião em curso, seria uma forma de garantir seus interesses de longo prazo na região. Telegramas divulgados recentemente pelo site WikiLeaks mostram que, a despeito do discurso pró-democracia, o governo de Barack Obama tem relações de grande intimidade com os egípcios. Mubarak, dizem os despachos da embaixada americana no Cairo, julga ter direito à ajuda dos EUA por causa de sua disposição em manter a paz com Israel, firmada em 1979 por seu antecessor, Sadat.

Na madrugada da sexta-feira para o sábado, depois da meia-noite no Cairo, Mubarak jogou o que pode ter sido uma última cartada. Ele foi à televisão, lamentou pelos feridos e reconheceu a legitimidade das aspirações por liberdade. Mas não fez nenhuma concessão real em relação a sair do poder. Num pronunciamento clássico dos ditadores, acenou com o caos e com o medo para justificar a continuidade de seu mandato. “O que aconteceu nos últimos dias colocou medo no coração de todos”, afirmou. “Eu jurei proteger o povo e farei isso.” Concretamente, ele anunciou que dissolveria seu gabinete no dia seguinte e apresentaria ao país, imediatamente, um novo governo, orientado para o combate à pobreza, à inflação e ao desemprego. Minutos depois do pronunciamento, as câmeras captaram os manifestantes gritando na rua: “Queremos ele fora!”.

Não há momento certo ou errado para a eclosão da democracia. O que há são obstáculos a ela

O principal temor dos americanos – e de boa parte do Ocidente – é que o Egito caia nas mãos de fundamentalistas islâmicos. Isso poderia levar a um questionamento mais incisivo da interferência americana no Egito e no resto do mundo árabe, inclusive no Iraque. Como não há uma figura forte de oposição a Mubarak, trata-se de um risco real. Gamal, o filho escolhido para lhe suceder, é uma opção praticamente inviável num contexto de rebelião. Diante desse cenário, é possível que Mubarak faça concessões para tentar se manter no poder. Mas pode ser tarde para ele. “O governo pode até acenar com reformas, mas não acredito que o povo vá se contentar com menos do que a saída de Mubarak do país”, diz o jornalista Hassan. “As pessoas pensam que a vitória está tão próxima que qualquer outra coisa não será suficiente.”

Parece ser essa a lógica dominante nas ruas dos países árabes desde a queda do governo da Tunísia. No Iêmen, o presidente Ali Abdullah Saleh, no poder há 32 anos, tentou conter a insatisfação popular com gestos na área econômica. Na semana passada, prometeu aumentar o salário de todos os funcionários públicos e militares. Antes, já se comprometera a mudar a legislação, limitando o exercício da Presidência a dois mandatos de cinco ou sete anos.
Israel ainda nutre a esperança de que Mubarak sobreviva. Um ministro israelense disse à revista americana Time que Israel confia no aparato de segurança egípcio para conter os protestos e garantir Mubarak no cargo. “Não tenho certeza se é o momento certo para o mundo árabe passar por um processo democrático”, disse.

Peter Macdiarmid/Getty Images e reprodução

O EGITO EM TRANSE

Carros incendiados nas manifestações ainda ardiam no Cairo na madrugada do sábado (à esq.), quando o presidente Hosni Mubarak anunciou em rede nacional, depois da meia-noite, uma reforma completa em seu gabinete – mas sem dar sinais de que deixaria o governo

Mas não há momento errado para a democracia acontecer – e sua consolidação no mundo árabe deve ser motivo de comemoração. O que existe são obstáculos a superar. O primeiro são os interesses externos de países como Israel ou Estados Unidos na manutenção de regimes que, embora cruéis para suas populações, atendem aos anseios por algum tipo de estabilidade. Diante das posições americanas dos últimos dias, esse parece ser um obstáculo menor. O segundo tipo de obstáculo, este no plano interno, é o radicalismo dos movimentos islâmicos que costuma aflorar nesses momentos.
No Líbano, em 2005, um promissor processo de redemocratização esbarrou, e ainda esbarra, no status do Partido de Deus (o Hezbollah), ao mesmo tempo uma organização armada e um partido político com votos e cadeiras no Parlamento. Na Argélia, em 1991, as primeiras eleições democráticas foram vencidas por fundamentalistas, o que provocou um golpe militar como reação. E há o espectro da revolução iraniana de 1979, que paira sobre todos os regimes autoritários do Oriente Médio. Ela começou como uma reação popular ao regime corrupto e ditatorial do xá Reza Pahlevi, apoiado pelos americanos. Terminou, como se sabe, num regime teocrático sem nenhuma semelhança com a democracia, que – acredita-se – a maioria dos manifestantes árabes gostaria de ver em seus países.

Fonte: Revista Epoca

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