Parte 3:Geografia política da água e seus recursos de poder no início do século XXI. Parte 3


Água no início do século XXI: geografia política e estratégia


Os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que a escassez de água afeta uma em cada três pessoas em cada continente, e que a quinta parte da população vive em áreas que sofrem essa situação. Um quarto da população mundial enfrenta escassez de água devido à falta de infra-estrutura para transportá-la desde rios e aqüíferos. Os fatos e números revelam que a situação é preocupante: 50% da taxa de doenças e morte nos países em desenvolvimento ocorrem por falta de água ou pela sua contaminação. Em todo o mundo, 2,3 bilhões de pessoas sofrem de doenças disseminadas pelas águas. E mais, 1 bilhão de pessoas não têm acesso fácil a nenhum suprimento seguro de água doce; muitos dos que têm não possuem sequer uma torneira em casa (SALATI, 2010, p. 21).
Estas não são questões apenas humanitárias, mas também de segurança e poder. Importante observação se extrai de Ribeiro (2008, p. 32), ao dizer que “a crise da água também é resultado de sua distribuição pelo planeta. [...] A soberania dos países sobre seus territórios tem sido empregada para solução da crise da distribuição da água”.

Tratar a escassez hídrica e a qualidade dos recursos é essencial para a estabilidade de regiões tensas como o Oriente Médio, como no caso dos conflitos entre Israel e seus vizinhos, e também sob a figura da reconstrução em curso no Afeganistão e no Iraque. Estes, assim como outras nações ao redor do globo têm sua estabilidade dependente, em parte, de sua capacidade de dar ao seu povo acesso à água e ao saneamento. Atenta-se ao fato de que mesmo sem água no território é possível conseguir esta substância por meios econômicos ou políticos, como a guerra. Isso permite afirmar que a falta de água não é um problema natural, mas político (RIBEIRO, 2008, p. 72).

Reforçando o fato político, na esteira dos relatórios alarmistas sobre o meio ambiente e a mudança do clima, apesar de ter-se a impressão de que a água está desaparecendo, a quantidade de água na Terra é praticamente invariável há centenas de milhões de anos, o que se altera ao longos dos anos é a sua distribuição e seu estado. Só há perda de qualidade para o consumo graças à poluição e à contaminação, nunca devido ao assoreamento como muitos dizem. São estes fatores que irão inviabilizar a reutilização, causando uma redução do volume de água aproveitável da Terra (JACOBI, 2009, p. 70).

No que concerne aos estoques globais de água doce, Brasil, Rússia, China e Canadá são os países que detêm as maiores reservas. A recente descoberta do Aquífero Alter do Chão[1] reforça a posição da América do Sul como detentora da maior parte dos recursos naturais (biodiversidade, hídricos, etc.) do mundo. A figura 1 ilustra a dimensão dos aqüíferos sul-americanos.

Fonte: Faculdade de Geologia / Instituto de Geociências da Universidade Federal do Pará


 
inicio do século XXI assistiu ao recrudescimento dos nacionalismos e dos fundamentalismos, tendo como evento principal os atentados de 11 de setembro. A face neoconservadora do governo Bush trouxe de volta à sociedade internacional o elemento hobbesiano que os teóricos neoliberais das relações internacionais, como Keohane e Nye (1977), haviam predito como possivelmente extinto após o término da confrontação bipolar e ascensão da interdependência econômica. Em verdade, o elemento de poder, em sua concepção realista, nunca foi extinto, mesmo quando se concebe uma sociedade internacional e não mais um sistema de Estados.


A maximização do soft power depende, e sempre dependeu, de elementos tangíveis de poder para sua consecução, independentemente de quais fossem os tipos empregados: econômicos ou militares. Em outras palavras, entre os Estados, exercer influência demanda mais que uma retórica bem elaborada, isto é, os argumentos fungíveis, como armas nucleares ou duras sanções econômicas, acoplam-se ao discurso, fortalecendo posições em prol da consecução de objetivos que não necessitam de demonstrações de força.

Sendo assim, guardar dentro de suas fronteiras volumes de água que podem sustentar, pelo menos, sua população por um longo prazo, é um fator estratégico para os anos vindouros, mais ainda se for possível abastecer outros Estados. O argumento se baseia quando observa-se as projeções de escassez e estresse hídricos feitas pela Organização das Nações Unidas para os próximos anos, como explicita o mapa 1.





Fonte: Global Environmental Outlook 2000, 1999, online.




Dada a importância vital da água às atividades humanas, os altos estoques podem proporcionar aos Estados novas fontes de poder, isto é, os detentores de reservas hídricas abundantes, em um futuro não muito distante, terão capacidade de barganhar em outros setores da agenda internacional, usando como instrumento de pressão o fato de possuírem tais recursos. Contudo, utilizar-se de recursos naturais, em especial a água, como instrumento de pressão política não é novidade, como se nota pelas palavras de Ribeiro (2008, p. 133):

A Turquia tem uma posição privilegiada em relação aos demais países do Oriente Médio. Ela abriga nascentes dos rios Tigres e Eufrates, destacados corpos d’água da região. Os turcos podem controlar a vazão de água para Síria e para o Iraque.

[...]

O Iraque manifestou preocupação, antes da ocupação das forças armadas dos EUA e do Reino Unido em 2003, com a intensificação do uso dos recursos dos rios Tigres e Eufrates pela Turquia. Mas a mudança da conjuntura política no país fragilizou sua capacidade de intervenção e negociação com a Turquia. Alguns analistas especulavam que a Turquia controlava o abastecimento do Iraque como maneira de pressioná-lo a comercializar petróleo com o países. No caso da Síria a pressão visaria o fim do apoio sírio aos curdos, que lutam pelo reconhecimento de um país autônomo na região que inclui parte expressiva do território turco, onde estão as nascentes do Tigre e do Eufrates.

No entanto, deslocar a variável ambiental, enquanto um grupo de estoques necessários à reprodução da vida e como base material necessária à economia, transformando-os em fontes de poder político não quer dizer apenas mensurar quantitativamente os recursos naturais. Refere-se a ir além das visões geopolíticas tradicionais, tratar o meio ambiente enquanto uma fonte viva de poder permite que se clarifique intenções e ações de Estados e outros atores (como ONGs e empresas transnacionais) no xadrez global, permitindo aos governos buscarem formas racionais e eficientes de lidarem com os novos desafios que se afiguram.


Tais afirmações encontram lugar num cenário em que as pressões políticas, a geografia política, não mais se assentam sobre ameaças armadas, e sim sobre distensões econômicas, e agora, ambientais, como se vê pelas disputas ao redor da questão climática. O que não quer dizer que conflitos armados não venham a ocorrer, tome-se como exemplo as Guerra do Iraque e a ocupação do Afeganistão levadas a cabo pelo presidente George W. Bush.

De mesmo modo, em situações limite, conflitos armados podem ser desencadeados por posse de reservas de água, como já existiram, em menor escala durante o século XX, porém, tais atritos desenham-se silenciosos, longe de projéteis e tanques, tendo como campos de batalha as chancelarias, os organismos financeiros internacionais e as empresas multinacionais.


Em referência à água, sob esta ótica, controlar tais reservas permite regular fornecimento, vazões e preços. Em um mundo em que a variável “economia” tornou-se predominante, isto eleva sobremaneira o nível de vulnerabilidade dos Estados que dependem de seus vizinhos, ou terceiros, para suprir suas demandas hídricas. O comprometimento do abastecimento hídrico torna impossível a reprodução decente da vida, a sustentação energética, e conseqüentemente, econômica. Não só, permite que grupos empresariais transnacionais ocupem vácuos deixados pelas bruscas mudanças internacionais ocorridas ao final do século XX, fragilizando a atuação estatal, e permitindo as implicações assistidas por todo o mundo periféricos durante a década de 1990.

Considerações finais

Os efeitos da falta de acesso à água e ao saneamento são conhecidos. De acordo com informe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), 1,8 milhão de menores de cinco anos morrem por falta de água limpa. Também, diz que a diarréia, principalmente causada pela água suja, mata cerca de 2,2 milhões de pessoas por ano, e que aproximadamente a metade dos leitos hospitalares do mundo está ocupada por quem sofre “doenças vinculadas à água contaminada”. Em mesmo sentido, em 2025, quase dois terços dos países enfrentarão uma absoluta escassez de água, elevando seu valor consideravelmente, a ponto de uma falta de água ameaçar o desenvolvimento social e econômico (BERGER, 2010, online).

Por outro lado, ao recordarmos que a água da terra não está acabando, que na realidade a água da superfície terrestre pode estar aumentando pela adição de água vulcânica, temos que a definição do caráter estratégico da água decorre da sua importância na vida contemporânea, principalmente, à realização do lucro e à sua sustentação material.

O caráter estratégico da água, definido em termos de poder não-militar, se dá pelo aumento do poder político, da capacidade de influência na política internacional. A associação e elevação do meio ambiente, que vai da gestão dos recursos hídricos às emissões de gases do efeito estufa, a termo de poder permite que se tenha um novo olhar sobre as relações internacionais contemporâneas. Busca-se uma mudança de percepção, por meio da reinterpretação de um recurso consolidado, o poder, e trazendo à mesa de debates, posições que procurem demonstrar a relevância da temática ambiental, desvinculando as mistificações futuristas e previsões alarmistas feitas em profusão e a exaustão.

A água adentra o século XXI como componente fundamental nesta releitura. Ora, o tema é tão controverso e sensível aos Estados que até hoje não se realizou uma conferência internacional sobre o compartilhamento dos recursos hídricos. As ações começam a ganhar corpo, como demonstra a iniciativa, ainda que tímida, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, da sigla em inglês), que realizou em 23 de abril de 2010 a primeira reunião anual de alto nível sobre água e saneamento na capital dos Estados Unidos.

De fato, os arranjos institucionais para a gestão da água ainda são frágeis, quando comparados a outros que compõem a interface ambiental da sociedade internacional. Contudo, se observados enquanto fontes de incremento do poder político dos Estados, certamente, receberão a devida importância de tratamento. Afinal, para se atingir interesses na cena internacional, é preciso que sejam utilizados, de modo refinado e racionalizado, as fortalezas reconhecidas e procurar diminuir as debilidades, por isso, nada mais transparente que a água para desnudar a geografia política do nascente século XXI.

FONTE MUNDORAMA



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