A região do Magreb, bem como a península árabica e o Egito, foram palco da deflagração em 2011 de uma série de manifestações contra os regimes autoritários instaurados, estes peças remanescentes de uma antiga ordem mundial, a ordem que se configurou durante a Guerra Fria (1948-1988). O Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) foi chamado a se posicionar de maneira mais assertiva quando os regimes que tinham sua legitimidade contestada, reagiram com ataques à população civil.
Assim a adoção da resolução de número 1.970, em 26 de fevereiro, marca o entendimento global sobre a “Paz e Segurança na África”. A criação desta resolução contou com o voto favorável do Brasil, porém os eventos subsequêntes, como a adoção da proposta de resolução 1.973, mostrariam uma posição brasileira menos assertiva e mais preocupada com os “precedentes” que estas medidas abririam.
No entanto este posicionamento mais cautelar não foi só resultado de uma conjutura política momentânea, mas também, dos efeitos que se originaram do engajamento brasileiro na solução dos problemas relativos ao programa nuclear iraniano. A Declaração de Teerã constituiu-se em um episódio problemático à atuação internacional brasileira, já que este foi muito mal visto por parte dos demais membros do CSNU, mais precisamente pelos membros permanentes. Precisar em que medida as repercussões da declaração de 17 de maio de 2010 influenciam a postura diplomática do Brasil atualmente é díficil. Porém há uma relação entre esta e a recente postura brasileira tocante ao Oriente Médio, já que após o episódio das críticas à tentativa de solução, o Brasil retraiu-se sobre os temas concernendo a região, preferindo uma atuação muito mais sólida. Assim preferiu-se embasar a legitimidade de sua posição no: consenso multilateral, ou seja, na atuação conjunta com os BRICS (Brasil, Rússia, India, China e África do Sul) e com o IBAS (Brasil, Índia e África do Sul) e na defesa do Direito Internacional, exemplo disto é a defesa no próprio CSNU, em 2010, da criação de um Estado palestino aos moldes previamente definidos no próprio acordo de criação do Estado de Israel.
O legado do caso iraniano irá se misturar ao próprio tradicionalismo diplomático brasileiro. Porém, em um primeiro momento, a postura brasileira foi muito diferente da que se assistiu no caso líbio. Portanto configurar uma única postura brasileira em relação à “Primavera Árabe” é o equivalente a dizer que este movimento é homogêneo, o que é empiricamente falso. Ao início da revolução na Túnisia, em 13 de Janeiro, a visão brasileira sobre o fato era a de que este concernia questôes internas, não passíveis portanto de intervenção internacional. Da mesma forma ao Egito, o Itamaraty reconheceu a legitimidade das demandas do povo e pediu para que o diálogo e não a força fosse o meio de tomada de decisão. Contudo mesmo neste caso a postura brasileira foi a de afirmar que por se tratar de assuntos internos não cabia a intervenção externa. No entanto o caso líbio, com o ataque a civis e o claro desrespeito aos Direitos Humanos pelo regime autoritário de Quadaffi, fez com que a postura brasileira se alterasse, resguardando o respeito ao consenso multilateral e a defesa de um processo de diálogo entre rebeldes e governo.
A adoção da resolução 1.970 singularizou o entendimento brasileiro sobre o andamento das perspectivas de ação da comunidade internacional na Líbia. Sanções econômicas deveriam ser o tônus das medidas internacionais, portanto ainda respeitando a soberania do Estado líbio, princípio este sagrado pelo artigo 2, parágrafo 7 da Carta das Nações Unidas. A cautela com que se via a possível atuação internacional na Líbia se materializou na abstenção da votação da resolução 1.973 que criou a zona de exclusão aérea na Líbia. O que formou esta posição, além da experiência adquirida no tocante à região, foi uma visão multidimensional sobre o tema.
O Brasil entende a soberania como um valor insubstituível e inalienável de todos os Estados. Assim a atuação da OTAN para manutenção da zona de exclusão aérea na Líbia foi encarada como o ferir de um princípio de Direito Internacional. A diplomacia brasileira assegurou-se que a sua visão fosse amplamente conhecida e que o caráter intervencionista daquela medida fosse notado. A desconfiança e mesmo prevenção brasileira parte do fato de sua percepção como possível alvo deste tipo de ação internacional. Tradicionalmente o seu pensamento externo tem por objetivo afastar qualquer tipo de intervenção em seu território. Brasil e China se abstiveram da votação, alegando que este tipo de medida feriria o espaço reservado à atuação soberana dos Estados. O Brasil também aludiu à possível militarização do conflito e mesmo à não imparcialidade por parte dos interventores como variáveis que desconfiguravam a “operação de paz”. Ademais, por ser composta por forças da OTAN, esta pretensa “operação de paz” não se reportou periódicamente ao DPKO e mesmo não teve suas operações orientadas pelo SGNU.
O pedido de ação internacional por parte da Liga Árabe foi, segundo o Brasil, mal interpretado pelo CSNU. O Brasil entende que os mecanismos regionais gozam de mais legitimidade e de um conhecimento sobre a população, e mesmo das dinâmicas regionais, mais aprofundado e portanto efetivo para o fim último que é o estabelecimento de uma paz duradoura. Ainda, o Brasil define que a imposição de uma zona de exclusão aérea não levaria o fim dos ataques a civis e o desrespeito aos direitos humanos. Antes o que ocorreria, e de fato ocorreu, fatalmente seria um rescrudescimento dos conflitos e um aumento no número de vítimas. A este argumento soma-se a própria dimensão multilateral que o Brasil tenta propor ao seu argumento contrário à intervenção. Junto ao IBAS em visita à Damasco em 10 de agosto de 2011, o Brasil reafirma ao lado de Índia e África do Sul, o compromisso com os direitos humanos, como também com a soberania da Síria. Neste caso, já se mostra a postura refratária a futuras intervenções semelhantes a ocorrida na Líbia, na Síria. O que se solidifica é um compromisso com a independência e a integridade territorial síria.
O reconhecimento do novo governo líbio após a queda do regime ditatorial mostrou a aversão brasileira aos resultados da intervenção. O Brasil preferiu esperar a decisão das Nações Unidas a seguir a tendência mundial de reconhecimento ao novo governo líbio. A importância deste fato está no conjunto para caracterização de uma diplomacia que em seu entendimento resguarda mais que o interesse nacional, ela garante a própria nação. Assim o reconhecimento tardio mostrará a insatisfação não por conta da mudança de governo, mas sim, pelo meio com que a sociedade internacional resolveu agir na Líbia.
A aversão brasileira por mudanças abruptas é patente em sua relação com as mudanças no mundo árabe, seja por sua prévia experiência na questão iraniana, seja pela interpretação de seu viés diplomático tradicional. No entanto a singularidade deste fato na caracterização de um processo está na colocação de um Brasil que consegue conjulgar a cautela com a ação internacional, não caindo assim em uma total inoperância. O que se pode esperar são relações com os novos regimes de governo que, com o tempo, serão destensionadas, se tornarão amistosas, ao passo que, o Brasil se perceber em um ambiente sem perigos
Stefanos Georgios C. Drakoulakis é Graduando em Relações Internacionais da Universidade de Brasília