Quando, no início dos anos 50, ele se dedica ao grande estaleiro da crítica da economia política, falta-lhe, no entanto, recuo histórico para apreender plenamente os ritmos da economia e desmontar os seus mecanismos. O próprio Ricardo, escrevendo sobre as crises de 1815, "não sabia, no fundo, nada sobre as crises". Os seus sucessores já não tinham as mesmas desculpas: "Os fenómenos posteriores, em particular a periodicidade quase regular das crises do mercado mundial, já não lhes permitem negar os factos ou interpretá-los como acidentais".
"A crise inquieta-me de maneira infernal: Todos os dias, os preços baixam. Manchester afunda-se cada vez mais na crise.", escreve Engels a Marx a 17 de Dezembro de 1857. O seu entusiasmo perante a propagação da crise americana de 1857 é contagioso. As notas dos Manuscritos de 1857-1858 (ou Grundisse) testemunham-no. A crise surge sob a metáfora da loucura, mas de uma loucura que "domina a vida dos povos". As tendências esquizóides do sistema capitalista manifestam-se plenamente. A unidade aparente da mercadoria "fragmenta-se". O valor de uso e o valor de troca "dissociam-se" e "comportam-se de maneira autónoma um em relação ao outro". Toda a economia se torna delirante, "alienada", enquanto esfera autónoma tornada incontrolável.
O vocabulário clínico não tem aqui nada de fortuito:
A condição de possibilidade das crises inscreve-se na duplicidade da mercadoria. Como todo o bom burguês, ela vive uma dupla vida. Por um lado, ela é tempo de trabalho abstracto materializado; por outro lado, é o resultado de um trabalho determinado. Para se comparar a outras grandezas de trabalho, ela deve "ser em primeiro lugar transposta em tempos de trabalho, ou seja, em qualquer coisa que difira qualitativamente dela". Esta "dupla existência" comporta em si mesma o risco permanente de uma cisão; Ela "deve necessariamente progredir até à diferença, a diferença até à oposição e à contradição entre a natureza particular da mercadoria enquanto produto [valor de uso] e a sua natureza universal enquanto valor de troca. "
A crise de 1857 coloca em evidência o divórcio entre o valor de uso da mercadoria e o valor de troca expresso no dinheiro, que ameaça interromper a sua "convertibilidade. O perigoso salto do capital da forma de mercadoria para sua forma de dinheiro pode então torna-se mortal. O "germe das crises" está então presente no dinheiro enquanto "valor tornado autónomo", "forma de existência tornada autónoma do valor de troca"[2]. Esta autonomia engendra a ilusão de que o dinheiro possa multiplicar-se por partenogénese, crescer no circuito do crédito sem ser fecundado pela sua passagem pelo processo de produção.
"Até aqui, só demonstrámos com evidência a indiferença recíproca dos momentos singulares do processo de valorização; que interiormente eles se condicionam, e que exteriormente se procuram, mas que eles podem ou não encontrar-se, separar-se ou não, corresponder-se ou não uns aos outros. A necessidade interna daquilo que forma um todo; e, ao mesmo tempo, a sua existência autónoma e indiferente, que já constitui a base das contradições. Mas, estamos longe de ter terminado. A contradição entre a produção e a valorização — na qual o capital constitui a unidade — deve ser apreendida de forma ainda mais imanente, como manifestação indiferente e aparentemente independente dos diferentes momentos singulares do processo, ou, mais exactamente, da totalidade de vários processos que se opõem."[3]
Desequilíbrio lógico
O disfuncionamento não poderia [ser] então senão de uma falta de informação ligada à complexidade crescente do mercado. Ricardo contempla-o, mas tranquiliza-se de imediato: "Não poderíamos admitir que o produtor possa estar mal informado durante muito tempo sobre as mercadorias que pode produzir com o lucro mais alto", e "é portanto inverosímil que ele possa produzir duravelmente uma mercadoria para a qual não existe procura". Em suma, o mercado seria um informador perfeito. Mais próximo de nós, este foi o argumento liberal de Friedrich Hayek em favor da concorrência livre e não falseada, tão cara aos arquitectos da União Europeia. A privatização da informação financeira e a invenção de produtos financeiros cada vez mais sofisticados, que apagam as pistas e confundem as mensagens, retiram fundamento a este mito. O mercado mostrou-se incapaz de suportar " o desafio informativo" ligado à micro finança. Constatando a impotência da comissão encarregue de vigiar os mercados americanos (a SEC, Securities and Exchange Commission) em desenredar as contas fabulosas de um Madoff, o seu antigo presidente, William Donaldson, admite que continua "por inventar" um "controlo adaptado a sistemas do mercado complexo".
Ricardo ainda podia crer na imparcialidade e na fiabilidade informativa do mercado, se não em tempo real, pelo menos a prazo, a longo prazo, a posteriori. Mas, e enquanto se espera? Entretanto, a cisão entre venda e compra permanece, e a "disjunção do processo de produção imediato e do processo de circulação desenvolve a possibilidade da crise". Esta possibilidade resulta do facto de as formas que o capital percorre no ciclo das suas metamorfoses (de dinheiro — A — a meios de produção — P — de meios de produção a mercadorias — M —, e de mercadorias a dinheiro) "poderem ser, e serem, separadas". Elas "não coincidem no tempo e no espaço". E mais ainda com a mundialização: o capitalista individual entende o salário que paga aos seus assalariados como um custo de produção puro, a partir do momento em que o consumidor compra produtos de importação e que os seus próprios produtos são vendidos num mercado longínquo. O círculo, qualificado de virtuoso, entre produção e consumo, venda e compra, é estilhaçado.
"dar à forma da mais-valia uma existência autónoma, causa a esclerose desta forma relativamente à sua substância. Uma parte do lucro, por oposição à outra, desliga-se completamente da relação capitalista enquanto tal, e parece derivar não da exploração do trabalho assalariado, mas sim do trabalho do próprio capitalismo. Por oposição, o interesse parece então ser independente quer do trabalho assalariado do operário e do trabalho do capitalismo, e ter no capital a sua fonte própria, autónoma. Se primitivamente o capital fazia, na superfície da circulação, de fetiche capitalista, de valor criador de valor, ele reaparece aqui sob a forma de capital portador de interesse, a sua forma mais alienada e a mais característica."[6]
Este prodígio do capital portador de interesse, do dinheiro que parece fazer dinheiro sem percorrer o ciclo completo das suas metamorfoses, é o estádio supremo do fetichismo e da mistificação mantida pelos economistas vulgares.
O capital transporta em si a crise
No Livro I, sobre o "processo de produção", Marx retoma a sua crítica da lei clássica dos mercados e do equilíbrio:
"Não há nada mais tolo do que o dogma segundo o qual a circulação implica necessariamente o equilíbrio das compras e das vendas, visto que toda a venda é compra, e vice-versa."
O que se pretende provar assim é que "o vendedor leva ao mercado o seu próprio comprador". Esta identidade imediata, que existia no comércio de troca é rompida pela generalização da produção mercantil e pela autonomização do dinheiro enquanto equivalente geral. Já não se trata, portanto, de troca directa de um valor de uso contra um outro valor de uso, mas de uma mercadoria contra dinheiro. A transacção torna-se "uma pausa", ou "um intermédio na vida da mercadoria, que pode durar mais ou menos tempo". A autonomia do dinheiro sanciona então a ruptura da simetria perfeita da troca. A vida da mercadoria, o encadeamento das suas metamorfoses, depende primeiramente dos desejos e caprichos do seu comprador potencial, mas também dos seus meios e solvência. No mostrador ou na vitrina, ela retém o seu alento face ao dinheiro, esse belo indiferente, que quererá comprá-la ou a desdenhará, segundo o seu belo prazer. Se este intermédio e esta espera se eternizam, a mercadoria em apneia arrisca a asfixia. A disjunção e a assimetria entre o acto de compra e o acto de venda é, portanto, um factor, não de equilíbrio, mas sim de desequilíbrio dinâmico.
"A conversão contínua e renovada de uma parte da classe operária em outro tanto de braços semi-ocupados, ou totalmente desocupados, imprime assim ao movimento da indústria moderna a sua forma típica. Da mesma forma que os corpos celestes, uma vez lançados na sua órbita, a descrevem durante um tempo significativo, a produção social, uma vez lançada no movimento alternado de expansão e de contracção, repete-o por uma necessidade mecânica. Os efeitos tornam-se, por sua vez, causas, e peripécias irregulares e aparentemente acidentais, assumem cada vez mais a forma de uma periodicidade normal. "É apenas do século XIX, desta época em que o mercado se mundializa, em que as nações industrializadas se tornam numerosas, «que datam os ciclos renascentes cujas vagas sucessivas abarcam anos, e que levam sempre a uma crise geral, ao fim de um ciclo e ponto de partida de um outro". O conceito de crise associa-se ao dos ciclos económicos que caracteri za a economia capitalista[9].
É a quebra das vendas, são os preços em queda para escoar os stocks, a venda com prejuízo, se necessário, de forma a reconstituir liquidez.
"Conclui-se então que a acumulação desse capital, diferente da acumulação real, qualquer que seja o rebento, aparece se não considerarmos senão os capitalistas financeiros, banqueiros, etc., mas também a acumulação própria destes capitalistas financeiros."[10]
Assim, a acumulação deste "capital fictício" na véspera da crise actual, tinha atingido tais dimensões que o esvaziar da bolha financeira foi igualmente vertiginoso: Em pouco menos de um ano, entre 29 de Dezembro de 2007 e 31 de Março de 2009, a capitalização bolseira do banco HSBC passou de 199,9 para 68 milhões de dólares (ou seja, uma quebra de dois terços), a do Bank of America passou de 194,6 para 31,1 milhões, a do Citygroup passou de 151,3 para 13 milhões, a do Natixis passou de 29,8 para 4,9 milhões, etc. Entre as sessões de 29 de Junho de 2007 e a do 1º de Abril de 2009, os índices das principais praças financeiras caíram em 53% (CAC 40) e 43% (Dow Jones).
A crise não pode, portanto, ser conjurada indefinidamente. O desenvolvimento do crédito pode adiá-la, como se produziu nos anos 1990, em que a desregulação financeira pôde dar a ilusão de um "regresso do crescimento". Mas o capital não pode prosperar indefinidamente a crédito. A quebra das vendas, ou o fracasso por causa da acumulação de créditos insolventes, acaba por dar o sinal geral de alarme. Quando já não podemos ignorar que a primeira vaga de mercadorias não foi senão aparentemente absorvida pelo consumo (ou graças a um crédito aventureiro), é a avalanche:
"Os capitais mercantis disputam o lugar no mercado. Para vender, os últimos a chegar vendem abaixo do preço, enquanto os primeiros stocks não são liquidados dentro dos prazos de pagamento. Os detentores são obrigados a declarar-se insolventes, ou a vender a qualquer preço para poderem pagar. Esta venda não corresponde em nada ao estado da procura, ela corresponde apenas à procura de pagamento, à necessidade absoluta de converter a mercadoria em dinheiro. A crise rebenta."[11]
É muito exactamente o que se produz desde o início da crise de 2008: vemos concessionários propor duas viaturas pelo preço de uma, promotores imobiliários oferecerem um automóvel como prémio do aluguer de uma habitação, e saldos monstruosos que começam a 70% ou menos de 90% do preço inicial!
A primeira determinação da crise reside então na disjunção entre a esfera da produção e a da circulação. A segunda, na disjunção entre o ritmo de rotação do capital fixo e aquele do capital circulante. O Livro III introduz uma nova, que pressupõe e integra as duas precedentes: a "lei da queda tendencial da taxa de lucro". O capítulo 13, sobre "A natureza da lei", recapitula "os três factos principais da produção capitalista": a concentração dos meios de produção em poucas mãos, a organização do trabalho social e a sua divisão como trabalho cooperativo, e a constituição do mercado mundial.
"No que respeita à população, a enorme força produtiva que se desenvolve no quadro do modo de produção capitalista, e o aumento dos valores-capital, que crescem bem mais depressa do que a população, entram em contradição com a base do lucro sobre a qual se exerce esta enorme força produtiva — e que, relativamente ao aumento da riqueza, se ameniza cada vez mais —, e com as condições de valorização deste capital que cresce sem cessar. Daí as crises".
Equação da queda tendencial da taxa de lucro
com (c / v) = composição orgânica do capital
e (pl / v) = taxa de exploração
encontra-se no numerador a taxa de exploração (ou de mais-valia): (pl / v)
e no numerador da composição orgânica [(c / v) + 1]
Quanto mais se acumula o trabalho morto (c) em detrimento do trabalho vivo (v), (mais a "composição orgânica" do capital (c / v) aumenta, e mais a taxa de lucro [pl / (c + v)] tende então a baixar. Esta não é uma lei mecânica ou física, mais uma "lei social" (supondo que o termo da lei continue apropriado). A sua aplicação depende de variáveis múltiplos, de lutas sociais com resultado incerto, de relações de forças sociais e políticas instáveis. Ela não cessa portanto de se contrariar a si mesma, suscitando contra-tendências:
- os mecanismos de dominação imperialista contribuem para fazer baixar a composição orgânica do capital pelo recurso a trabalho barato e pela redução do custo de produção de uma parte do capital constante;
O aumento da taxa de mais-valia [pl/v] pode então contrariar a "queda tendencial" de diversas maneiras. Através:
- da redução do capital variável pela descida dos salários directos ou indirectos.
- da redução do capital constante pela redução do custo das matérias-primas, a produção de fluxo contínuo (just in time), o stock zero...
Além disso:
- A queda efectiva da taxa de lucro não implica automaticamente uma redução da sua massa. Se o ritmo de rotação do capital se acelera, a segunda pode continuar a aumentar, mesmo que a primeira caia. Se ele completa o seu ciclo, por exemplo, quatro vezes ao ano em vez de uma só, a massa pode, pelo contrário, ser multiplicada por dois, mesmo se a taxa diminui para metade. A facilidade do crédito, o marketing, a publicidade, a gestão do grande consumo, a obsolescência integrada, a falsa novidade da moda, contribuem precisamente a acelerar essa rotação e a dar o sentimento de uma aceleração da história.
Estas respostas do capital à erosão tendencial da taxa de lucro são os recursos ocultos daquilo a que o senso comum chama mundialização. Assim, as crises não constituem limites absolutos à produção e ao consumo de riquezas sociais, mas contradições relativas a um modo de produção específico "correspondente a uma certa época de desenvolvimento restrito das condições materiais de produção". Não se produzem demasiados bens de consumo relativamente às necessidades da população, nem demasiados meios de produção relativamente à população em condições de trabalhar, "mas produzimos periodicamente demasiada riqueza, sob formas capitalistas contraditórias". No Livro III de O Capital, a separação da compra e da venda que constitui a condição geral formal das crises, traduz-se então concretamente pelo facto de a capacidade de consumo solvente entrar em co ntradição com a procura do máximo lucro. Marx nunca fala de uma "crise final". Ele demonstra apenas como "a produção capitalista tende sem cessar a ultrapassar as suas barreiras imanentes". Contrariamente ao que, nos anos 30, puderam pretender Evgheni Varga e os teóricos da crise de afundamento final do capitalismo (Zusammenbruchstheorie) no seio da Terceira Internacional[12], as suas crises são inevitáveis, mas não inultrapassáveis. A questão é saber a que preço, e sobre as costas de quem, elas podem ser resolvidas. A resposta não pertence à crítica de economia política, mas à luta de classes e aos seus actores políticos.
Notas:
[1] K. Marx, Manuscritos de 1857-1858, Paris, Editions sociales, 1980, tomo 1, p.356. (retornar ao texto)
[2] K. Marx, Manuscritos de 1861-1863, Paris, Editions sociales, 1980, pp. 17 et 18. (retornar ao texto)
[5] Denis Guedj, "Estes matemáticos vendidos aos financeiros/ Ces mathématiques vendues aux financiers", Libération, 10 Dezembro 2008: "Como não falar da diva dos média, a senhora Karoui? Madre Superiora das MAF (matemáticas aplicadas à finança), entrevistada pelo Wall Street Journal, que ousou proclamar: "As matemáticas financeiras não têm nada a ver com a crise". Não é porque os seus rebentos não viram chegar a crise que deixam de ter alguma coisa a ver com ela. Interrogada sobre os produtos derivados, a senhora Karoui oferece esta resposta magnífica: "a sua existência não é um absurdo". Enquanto matemática, ela utiliza a prova da existência pela impossibilidade de não-existência: os produtos derivados devem existir, visto que podem existir!" (retornar ao texto)
[6] K. Marx, O Capital, Paris, Editions sociales, tomo 3, p.20. (retornar ao texto)
[10] K. Marx, O Capital, tomo 3, op. cit., p. 164 e 171. (retornar ao texto)
[11] K. Marx, O Capital, op. Cit., Livro III, tomo 2, p. 71. (retornar ao texto)
Tradução: Sérgio Vitorino
Fonte: Associação Política Socialista Revolucionária.